segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Banco de Textos - César Amorim

César Amorim
TEXTOS



Tem Cura - De César Amorim.

JÚLIO – Então, é isso, Doutor. Falo sozinho o tempo todo.
DOUTOR – Mas isso é normal.
JÚLIO – Normal nada. 
DOUTOR – Todo mundo, uma hora ou outra, acaba conversando sozinho. Faz parte.
JÚLIO – Qual a parte do “o tempo todo” o senhor não entendeu? Eu devo ser um esquizofrênico.
DOUTOR – Esquizofrênicos não têm noção de que conversam sozinhos.
JÚLIO – Às vezes tou com minha namorada e deixo de conversar com ela pra conversar comigo. E o pior, eu respondo. 
DOUTOR – E sua namorada diz o quê?
JÚLIO – Não diz nada. Ela não consegue participar da conversa. Meu outro lado é muito fechado, não conversa com ninguém, só comigo. 
DOUTOR – Esse seu lado é tímido, então?
JÚLIO – Muito.
DOUTOR – Entendo. E quando isso começou?
JÚLIO – Quando eu era criança e brincava de médico com meus brinquedos.
DOUTOR – Toda criança brinca de médico.
JÚLIO – Pois é, mas eu criava uma equipe inteira. Não brincava com as outras crianças do meu condomínio. Só comigo mesmo. 
DOUTOR – Então, quer dizer, que existem outros?
JÚLIO – Muitos outros. Já conversei sozinho, uma vez, com cerca de dez “eus” diferentes. E o pior é que foi divertido.
DOUTOR – E é sempre divertido?
JÚLIO – Na maioria das vezes é sim. Eu sou muito engraçado.
ELE RI SOZINHO.
DOUTOR – Então, está tudo bem. Se você está feliz, e não está prejudicando ninguém, é o que importa. 
JÚLIO – Tou prejudicando minha namorada. Agora eu só quero transar com ela a três ou a quatro. 
DOUTOR – Como é?
JÚLIO – Eu fico variando, sabe? Faço amor com ela como se tivessem quatro pessoas ao mesmo tempo com a gente na cama.  
DOUTOR – Então, ela deve ficar feliz.
JÚLIO  - No início ela até gostava, mas hoje fica exausta.  A gente dá uma canseira nela.
DOUTOR – E você não fica cansado?
JÚLIO – Muito, doutor. O senhor não faz ideia. Tenho sofrido pra gozar mais de três vezes numa noite. Não é mole não.
DOUTOR –  Mas não pode ser mole, tem que ser duro mesmo. 
O DOUTOR RI SOZINHO.
DOUTOR – Desculpe.  Bom, e todos esses seus lados são tímidos? 
JÚLIO – Nem todos. Só o meu melhor amigo é que é. É ele que está sempre comigo.
DOUTOR – E ele transa com tua namorada junto contigo?
JÚLIO – Transa. Foi ele quem me sugeriu. Ele é tímido, mas é taradão. 
OS DOIS RIEM.
DOUTOR – Então, rapaz, você não tem problema nenhum. Você está dando vazão às suas fantasias e isso é ótimo. E sua namorada compreende. Quem dera eu tivesse um melhor amigo assim que nem esse pra transar com minha mulher. 
JÚLIO – O senhor também tem essa fantasia?
DOUTOR – Ih, tenho várias. Nem te conto.
JÚLIO – Somos dois pervertidos.
DOUTOR – Dois safadões.
OS DOIS RIEM.
JÚLIO – Agora, falando sério. Essa história tá mexendo muito comigo. Se fosse só na cama, com minha namorada, ainda vá lá. Mas isso tá na minha vida.  
DOUTOR – Você não consegue ficar sem esse seu amigo?
JÚLIO – Já tentei. Conversei com ele e tal, falei que eu precisava de um tempo sozinho. Ele até respeitou, mas eu tou viciado. Preciso dele pra me ouvir e ele precisa de mim. O que eu posso fazer, doutor?
DOUTOR – Greve de silêncio. Fica mudo por um tempo. Finge que perdeu a voz. 
JÚLIO – Já tentei isso também. E foi pior. Eu ficava fazendo careta, falando a linguagem dos sinais, fazendo mímica, até conseguir me comunicar comigo. Foi uma tortura.
DOUTOR – Rapaz, então, não sei como te ajudar. 
DOUTOR – Não diga isso. Você é minha última esperança.
ENTRA A ATENDENTE. 
ATENDENTE – Doutor, desculpe interromper. Mas seu primeiro paciente está esperando. Posso mandar entrar?
DOUTOR – Ainda estou um pouco nervoso.
ATENDENTE – Isso é normal. A primeira vez é sempre difícil mesmo. O senhor se acostuma.
DOUTOR – Será que vou saber lidar com gente louca? 
ATENDENTE – Vai sim. Vi que o senhor estava ensaiando.
DOUTOR –  Você me ouviu conversando sozinho? 
ATENDENTE – Ouvi sim. E tava ótimo. O senhor só não podia ter dito que não sabia como ajudar. Isso foi um erro.
DOUTOR – Pois é, eu sei. Mas esse outro lado que criei é tão cheio de questões que me confundiu.
ATENDENTE – Ele está aqui ainda? 
DOUTOR – Está sim.
ATENDENTE – Me diz onde, que falo com ele e senhor vê como se faz.
DOUTOR – Ele tá sentado aí, atrás de você.
A ATENDENTE OLHA NA DIREÇÃO DE JÚLIO, SEM ENCARÁ-LO DIRETAMENTE. ELA NÃO O VÊ.
ATENDENTE – Olá, tudo bem? Qual seu nome mesmo?
JÚLIO E A ATENDENTE OLHAM PARA O DOUTOR, ESPERANDO QUE ELE RESPONDA. DOUTOR E JÚLIO PASSAM A FALAR JUNTOS, EM UNÍSSONO. 
DOUTOR E JÚLIO – Júlio.
ATENDENTE – Então, Júlio, eu ouvi o que você e o doutor conversavam e acho que posso ajudar.
DOUTOR E JÚLIO – Puxa, que bom. 
ATENDENTE – Olha, o doutor é inexperiente, tá começando a clinicar hoje, acabou de sair da faculdade, você precisa ter paciência com ele. 
DOUTOR E JÚLIO – Tá certo e o que você pode fazer por mim?
ATENDENTE – Na verdade, por você, Júlio, nada. Mas posso fazer pelo doutor, pra ele relaxar e atender bem os pacientes.
A ATENDENTE PASSA A FALAR DIRETAMENTE COM O DOUTOR. ELA ANDA SENSUALMENTE EM DIREÇÃO A ELE.
ATENDENTE – Sabe, ouvi que você gosta de organizar festinhas com sua namorada e que o doutor também gostaria de organizar festinhas com a mulher dele, que é uma gata, por sinal. Eu me solidarizo com o senhor, doutor.
QUANDO A ATENDENTE ESTÁ PRESTES A BEIJAR O DOUTOR, ENTRA UMA MULHER.
MULHER – Com licença, doutor.
TODOS OLHAM PARA A MULHER.
MULHER – Ai, que susto. Achei que o senhor estivesse acompanhado. Ouvi vozes.
O DOUTOR, A ATENDENTE E JÚLIO FALAM AO MESMO TEMPO.
DOUTOR, ATENDENTE E JÚLIO – Não, tava falando sozinho. Tenho essa mania.
MULHER – Então, posso mandar entrar o primeiro paciente?

FIM.

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Instantes, de César Amorim

SOBRE A CAMA, ENTRE OS LENÇÓIS, UM CASAL APAIXONADO ACABA DE FAZER AMOR.
ALICE – Delícia.
BETO – Delícia é você.
ALICE – Delícia somos nós. Delícia foi essa transa maravilhosa.
BETO – Fui à lua e voltei.
ALICE – Eu ainda tou lá. E você fica ainda mais lindo visto aqui de cima.
ELES SE BEIJAM COM CARINHO.
BETO – Me conta. Como foi teu dia?
ALICE – As aporrinhações de sempre. Mas tudo tem sua compensação. Estar aqui com você compensa qualquer coisa.
BETO – Fui ao médico.
ALICE – E aí?
BETO – A gente já pode começar a encomendar o filhote.
ALICE – Ai, Beto! Verdade?
BETO – Já podemos começar os trabalhos.
ALICE – Já começamos. Quem sabe não tem um mini Beto aqui dentro se formando?
BETO – Ou uma mini Alice.
ALICE – O que você prefere?
BETO – Uma mini Alice, claro.
ALICE – Com todas as chatices e neuroses?
BETO – Com todas as chatices e neuroses que eu aprendi a amar.
ALICE – Será que vou aguentar a competição?
BETO – Competição?
ALICE – Duas mulheres pra um homem só. Você dá conta?
BETO – Não serão duas mulheres para um homem. Será um homem babão pra cada uma delas. É diferente.
ALICE – E se for um Betinho?
BETO – Dois babões pra você.
ALICE – Tenho que contar...
BETO – Não tem que contar nada pra ninguém ainda. Calma. Deixa a gente ter certeza de que a cutucada deu certo.
ALICE – Ai, que horror. “Cutucada”.
BETO – Eu curti.
ALICE – Não se curte uma cutucada. E não gosto desse nome.  Que sem graça.
BETO – Desculpa, posso usar outros nomes, mas que você foi cutucada foi. E também não tem como bloquear uma cutucada. Vou te cutucar sempre.
ALICE – Não tem mesmo como bloquear?
BETO – Acho que não. Você quer bloquear minha cutucada?
ALICE – Tá bom, Beto, não bloqueio tua cutucada. Só não chama de cutucada.
BETO – Então, também não compartilha.
ALICE – Não se compartilha uma cutucada. Ela será sempre só nossa. Mas vamos chamar de outra coisa.
BETO – Penetrada.
ALICE – Péssimo.
BETO – Cravada.
ALICE – Horrível!
BETO – Fincada.
ALICE – O bom gosto mandou lembranças. Vamos chamar de... Deixa ver... Uma sigla: AG. Pronto.
BETO – AG? Que porra é essa?
ALICE – Amorzinho Gostoso.
BETO – Broxante pra caralho.
ELES CAEM NA GARGALHADA.
ALICE – Ai, como é bom rir com você.
BETO – Como é bom cutucar você.
ALICE – Como é bom discutir com você, seu chato.
BETO – Como é bom ser chamado de chato assim desse jeito.
ALICE – Como é bom saber que você gosta de ser chamado de chato assim desse jeito por mim.
BETO – Como é bom beijar você.
ELES SE BEIJAM.
ALICE – Como é bom amar você.
BETO – Como é bom ser amado por você.
ALICE – Como é bom ser romântica.
BETO –  Como é bom a gente não ser diabético. Haja doçura!
ALICE – Como é bom escutar suas besteiras.
BETO – Como é bom ter só um ano de casados.
ELES GARGALHAM DE NOVO.
ALICE – Queria que esse momento não terminasse nunca.
BETO – Eu também. Me sinto pleno, sabe?
ALICE – Sei sim.
BETO – Uma felicidade que não cabe em mim.
ALICE – Nem ligo se minha chefe é uma pentelha.
BETO – Nem que o meu chefe seja um gordo escroto filho da puta.
ALICE – Nem que meu carro ainda não tenha saído do conserto.
BETO – Não saiu ainda?
ALICE – Ficava pronto hoje, lembra? Mas o mecânico não entregou.
BETO – Nem ligo se o mecânico é um mentiroso filho da puta.
ALICE – Nem que a máquina de lavar roupa não passa na porta da área de serviço.
BETO – Não passa mesmo?
ALICE – Medi. E nada. Vamos lavar a roupa na cozinha.
BETO – Nem ligo de lavar a roupa na cozinha.
ALICE – Nem que o Rex esteja com catarata.
BETO – O Rex? Por isso que ele vive batendo nas coisas.
ALICE – Por isso o olho dele tá todo branco, amor.
BETO – Nem ligo... Não, mentira, ligo sim. Não foi um bom exemplo. Coitado do Rex.
ALICE – Nem ligo se meu marido só sabe dos problemas da casa por mim.
BETO – Nem ligo se minha esposinha linda resolve todos os problemas da casa pra mim e eu nem fico sabendo.
ALICE – Mas eu ligo quando meu maridinho não quer ouvir sobre os problemas da casa.
BETO – Mas eu estou ouvindo agora.
ALICE – Porque você está de bom humor.
BETO – Nem ligo que minha esposinha me chame de mal humorado.
ALICE – Nem ligo se meu maridinho põe palavras na minha boca.
BETO – Nem ligo quando minha esposinha coloca outra coisa na boca além de palavras que ela não disse.
ALICE – Nem ligo quando meu maridinho é vulgar.
BETO – Nem ligo quando minha esposinha se faz de santa e me chama de vulgar.
ALICE – Nem ligo de ser chamada de santa.
BETO – Nem ligo se ela mente descaradamente.
ALICE – Nem ligo que ele seja um safado ótimo de cama.
BETO – Nem ligo de ser bom de cama pra caralho.
ALICE – Nem ligo se eu encho a bola dele e ele fica pensando que é o único homem na face da terra.
BETO – Nem ligo em ser o único homem na face da terra.
ALICE – Nem ligo se eu já estou grávida.
BETO – Nem ligo se... O quê?
ALICE – Nem ligo se ele faz essa cara linda de espanto tentando entender se eu disse o que eu realmente disse.
BETO – E você disse mesmo o que eu penso que você disse?
ALICE – Disse. Eu já sabia que o seu tratamento tinha dado certo. Soube hoje com certeza. Fiz a ultra pela manhã. Por isso estou mais gordinha.
BETO – Nem ligo se você está mais gordinha.
ELES SE ABRAÇAM COM INTENSIDADE. ELE PÕE A CABEÇA NA BARRIGA DELA.
BETO – Meu amor, meu amor. Esse instante... É daqueles que valem uma vida inteira.  A prova de que estar vivo, e com você, me torna especial. Obrigado.
ALICE – Te amo mais que tudo.
BETO - Quem será que está vindo? Um mini Beto ou uma mini Alice?
ALICE – E se forem os dois?
ELES SE OLHAM FUNDO NOS OLHOS E SE BEIJAM ARDENTEMENTE.


FIM.


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Amizade Verdadeira, de César Amorim


MARINA – Ainda bem que você tá acordada, amiga.
LUANA – Meu Deus, o que foi? Fiquei aflita. Que assunto do meu interesse é esse que você quer conversar a essa hora da noite? 
MARINA – O Marcão não tá aí não, né?  
LUANA – Não. Tou sozinha.  
MARINA – Graças. Melhor.
LUANA – Mas não tenho segredos com ele.
MARINA – Ele é somente teu namorado, Luana. Você precisa ter segredos.
LUANA – Não vejo porquê. Sou um livro aberto.
MARINA – Um livro aberto pode ser lido por qualquer um.  Isso não é bom pra uma mulher.
LUANA – Sou um livro aberto escrito numa língua que poucos dominam. Todos me veem, mas poucos me leem.
MARINA – E pelo visto o Marcão te leu.
LUANA – E com muita fluência.
MARINA – O problema é justamente esse, amiga. A fluência do Marcão não é só na sua língua.
LUANA – Do que você está falando?
MARINA – Do poliglota do Marcão.
LUANA – Você veio até aqui a essa hora da noite pra falar mal do meu namorado? Cadê teu marido, o Pedro?
MARINA – Viajou.  Graças.  Me deu um sossego.
LUANA – E você aproveitou pra vir se meter na minha vida.
MARINA – Eu pensei muito. Tenho visto as suas postagens no face  e tenho ficado incomodada. 
LUANA – O que você tem contra o Marcão?
MARINA – Não gosto dele. Pronto, falei. Ouvi  dizer que muitas mulheres já passaram na mão dele.
LUANA – Ou ele passou na mão de muitas mulheres?
MARINA – Dá no mesmo. 
LUANA – Não, senhora.  Se fosse uma mulher, todos diriam que ela é que tinha passado na mão de vários homens. Agora, quando é um homem, todo mundo diz o contrário, que elas é que passaram na mão dele. Visão machista a sua.
MARINA – Ok, você venceu. A ordem dos fatores não importa. O que importa é que ele é um galinha.
LUANA – Ele foi. E o que ele foi não me interessa. Agora ele tá comigo e cisca só no meu galinheiro.
MARINA – Então, você deixou seu galinheiro com a porta aberta, amiga.  Ele não tá só contigo. 
LUANA – Você sabe de alguma coisa?
MARINA – De várias. Você não faz ideia.  Sou testemunha ocular.
LUANA – Você é míope, Marina.
MARINA – Mas uso lente. E vim te abrir os olhos.
LUANA – Então, me conta. Quero saber de tudo. 
MARINA –  Cai fora dessa relação. Marcão não é pra você. 
LUANA – Ele tá com mais alguém além de mim?
MARINA – Desculpa, mas está sim. 
LUANA –  Quem é ela?
MARINA – Não sei se eu devo...
LUANA – Deixa de frescura.  Agora fala.
MARINA – Será, gente?
LUANA – Tua língua tá coçando. Fala logo.
MARINA – Tá bem. Mas, olha, você tem que ser forte.  Preparada?  Então, lá vai. Ele tá... comigo também. 
LUANA – Como é que é? Mas você é casada!
MARINA – Pois é, eu sei.  Mas ele é um cafajeste delicioso, muito diferente do Pedro. 
LUANA – A galinha aqui é você.
MARINA – Eu também sou. Mas o Marcão é mais.
LUANA – Não me interessa quem é mais. Como você pôde? Você é minha melhor amiga, Marina, e é casada! E você disse que não gostava dele, sua falsa!
MARINA – Não gosto mesmo.  Não gosto dele com você.  Ele sozinho é ótimo. Por isso você não pode ficar com ele. Não vê? Ele não é homem pra você.
LUANA – Que cara de pau! E ele é homem pra quem? Pra você?
MARINA – Claro! Eu e ele somos iguais. Você é muito certinha, Luana, muito careta. Jamais teria a capacidade de fazer o que eu faço.  
LUANA – E o teu marido? Você acha que ele merece?
MARINA – Quer saber? Merece sim. Quem manda ser tão ruim de cama. 
LUANA – Sério? O Pedro é ruim de cama? Não tem quem diga.
MARINA – Minha filha, você não conhece o Pedro. 
LUANA – Ah, mas ele tem um olhar que cativa a gente.
MARINA – Cativar é coisa pro Pequeno Príncipe. Não quero um príncipe, ainda mais “pequeno”.  Se é que me entende.
LUANA – Você, então, quer que eu desista do Marcão pra você ficar com ele? E o seu marido? 
MARINA – Fico com os dois. Toda mulher precisa de um amante pra se manter com a pele ótima. Desde que o Marcão entrou na minha vida, passei a economizar nos cremes.  Ter amante é uma questão de economia.
LUANA – E eu fico como? Chupando o dedo?
MARINA – Você tem dedos lindos. 
LUANA – Fora da minha casa agora! Que espécie de amiga é você?
MARINA – A melhor.  A mais verdadeira.  Podia tá te enganando como esses homens fazem com a gente, mas não. Tou aqui me abrindo, mesmo que isso te magoe. 
LUANA – Vou contar tudo pro Pedro.
MARINA – Você não tem o direito de se meter no meu casamento. 
LUANA – Você se meteu no meu.
MARINA – Você não tá casada, sua tonta.  O ditado pra não meter a colher só vale pra marido e mulher, não fala nada de namorados. 
LUANA – Fora daqui. Já ouvi o suficiente. Vou te bloquear no face, no instagram.  Vou deletar teu WhatsApp.  Vou sair de todos os grupos que você está.
MARINA – Não faz isso. Sacanagem. Pelo menos fica no grupo da turma da faculdade.  Seus comentários são ótimos. 
LUANA – Tá, vou pensar. 
MARINA - Bom, era só isso. Vou nessa. O Marcão deve tá chegando lá em casa agora, já que o Pedro viajou...  Tchau, querida.
MARINA SAI.
LUANA – Sua filha da mãe!
ENTRA PEDRO, SEM CAMISA, COM UMA TOALHA ENROLADA NA CINTURA.
PEDRO – Ela já foi?
LUANA – Já. Você ouviu o que ela disse?
PEDRO – Ouvi. Você concorda com o que ela falou de mim?
LUANA – Claro que não, Pedrinho. Tua mulher não sabe o que diz, seu gostoso. Você falou que ia viajar?
PEDRO – Falei. Tenho todo o fim de semana pra gente.
ENTRA MARCÃO, PELADO, ENROLADO NUM LENÇOL.
MARCÃO – Ela já foi?
LUANA – Já. E falou horrores de você, seu safado.
PEDRO – Marcão destruindo corações.
MARCÃO – E aí, Pedro, agora é minha vez de receber massagem.   Quero a quatro mãos também, hein!
LUANA – Pode deixar, delícia. 
PEDRO – Você vai ter a massagem que merece.
MARCÃO – Nossa, Luana, você tá com uma pele deliciosa.
PEDRO – É mesmo.
LUANA – Eu sei, meu bem. Eu sei.
OS TRÊS SE ABRAÇAM SENSUALMENTE .
BLACK OUT.
FIM


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Novela das Seis - de César Amorim.

TÍPICA NOVELA MEXICANA. COM TRILHA SONORA RECHEADA DE SONS IMPACTANTES DURANTE AS REVELAÇÕES.
CARTOMANTE – Branco.
ANGÉLICA – Preto.
CARTOMANTE – Preto?
ANGÉLICA – Preto.
CARTOMANTE – Ah, filha, ele pinta. Não é possível. Aqui tá bem claro. Grisalho.
ANGÉLICA – Grisalho não é branco.
CARTOMANTE – É o quê, então?
ANGÉLICA – No máximo cinza.
CARTOMANTE – Cinza. Pronto. Tá bom assim?
ANGÉLICA – Não. Porque o cabelo dele não é cinza. É preto.
CARTOMANTE – Estamos falando da mesma pessoa?
ANGÉLICA – Acho que não.
CARTOMANTE – Tou falando do homem que te come.
ANGÉLICA – Não é do meu marido?
CARTOMANTE – Claro que não.
ANGÉLICA – Ah, então, desculpa. O Geraldo, meu amante, é grisalho mesmo, mais pra branco total.
CARTOMANTE – Estava certa. Deixa voltar. Esse homem, teu amante, te fez um filho, não foi?
ANGÉLICA – Foi?
CARTOMANTE – Se não ainda, a criança deve tá apontando por aí. Vejo uma filha na sua vida.
ANGÉLICA – Impossível. Não posso mais ter filho.
CARTOMANTE – Mas você já tem uma filha, ou não?
ANGÉLICA – Tenho um filho. O Felipe. Mas ele é meu filho e do meu marido.
CARTOMANTE – Filho? Estranho... Não é isso que vejo nas cartas. 
ANGÉLICA – As cartas estão dizendo que o Lipe não é filho do Osvaldo, meu marido? 
CARTOMANTE – Pelas cartas, sem chance. O seu filho é filho de outro homem. E é uma filha.
ANGÉLICA – Não é possível! O meu amante é estéril.  
CARTOMANTE – Então, sua filha é filha do Espírito Santo. 
ANGÉLICA – Não. Ele é filho do meu marido. E eu não tenho filha, já disse.
CARTOMANTE – Impossível. Está nas cartas. E elas não mentem. Você não pulou a cerca?
ANGÉLICA – Pulo a cerca há anos, mas sempre pro mesmo quintal. 
CARTOMANTE – Bom, se não é do seu amante, não faço ideia de quem seja. De seu marido não é.
FELIPE ENTRA.
FELIPE – Eu posso explicar tudo, mamãe.
ANGÉLICA – Felipe, filho. O que você faz aqui?
FELIPE – Eu sei de quem eu sou filho, mamãe. 
CARTOMANTE – Você é o filho dela?
FELIPE – Sou sim, Madame Zoraide. 
CARTOMANTE – Mas você foi adotado. 
ANGÉLICA – Adotado?
FELIPE – Adotado, mamãe.
ANGÉLICA – Por quem, meu Deus? Que história é essa?
FELIPE – Fui adotado por papai.  
ANGÉLICA – Que loucura é essa, Lipe? 
FELIPE – Não é loucura, mamãe. Aliás, você não é minha mãe. 
ANGÉLICA – Deixe de maluquice! Você já conhecia Madame Zoraide?
CARTOMANTE – Ele veio aqui semana passada. 
FELIPE – Fui eu que lhe dei o contato dela, mamãe. 
ANGÉLICA – Não lembro...
CARTOMANTE - Ah, essa é a sua mãe que sofre de perda de memória...
FELIPE – É ela sim, Madame Zoraide. A memória dela só vai até a semana anterior. 
CARTOMANTE – Que triste. Eu entendo bem o que é isso...
FELIPE – Eu sei.
ANGÉLICA – Minha memória o quê? Vocês podem me explicar o que está acontecendo aqui?
FELIPE – Mamãe, a senhora sofreu um acidente há muitos anos e perdeu a memória recente. Toda semana, a gente tem que explicar pra senhora quem a senhora é e quem somos nós. Já faço isso há muitos anos.
ANGÉLICA – Então, você sabia que era adotado? 
FELIPE – Sempre soube. E foi isso que me fez acreditar no poder da Madame Zoraide. Ela me falou isso assim que me viu. 
ANGÉLICA – E o Osvaldo, meu Deus! Ele sabe disso?
FELIPE – Sabe sim, mamãe. Ele me confessou tudo. Ele e o Geraldo me contaram.
ANGÉLICA – O Osvaldo conhece o Geraldo? Meu Deus, estou perdida. Eles já sabem de tudo, então?
FELIPE – De que a senhora é amante do Geraldo?
ANGÉLICA – Você também sabe?
FELIPE – Sei sim, mamãe. E também sei que isso é mentira. 
ANGÉLICA – Mentira? Ah, claro que o Geraldo desmentiria essa história. Ele não é homem pra assumir.
FELIPE – Pelo contrário, mamãe. Ele é homem pra assumir sim. Ele assumiu tudo. Só que a senhora nunca foi amante dele.
ANGÉLICA – Claro que fui. Claro que sou. Eu amo o Geraldo. 
FELIPE – E ele ama meu pai. Você e o Geraldo são apenas amigos.
CARTOMANTE – O valete duplo na sua vida, rapaz! Sabia que tinha babado nessa história.
FELIPE – Foi por causa da descoberta do caso deles que a senhora sofreu o acidente que lhe afetou a memória. Daí a senhora distorceu tudo e passou a achar que eu era seu filho e que o Geraldo era seu amante, quando na verdade ele é amante do meu pai. 
ANGÉLICA – Isso não é possível.
FELIPE – A senhora diz isso toda semana, já tou acostumado. 
ANGÉLICA – Então, você não tem mãe? 
FELIPE – Sempre gostei da senhora como de uma mãe. Mas queria descobrir quem era minha mãe de verdade, por isso vim aqui em Madame Zoraide. 
ANGÉLICA – E ela lhe disse quem é sua mãe?
FELIPE – Não. Isso ela não soube dizer. Mas eu vim aqui já sabendo quem era, só precisava da confirmação. Foram anos de investigação. Graças ao Facebook, encontrei a Ritinha.
CARTOMANTE – Minha filha?
ENTRA RITINHA.
RITINHA – Sim, mamãe. 
CARTOMANTE – E o que a Ritinha tem a ver com isso?
FELIPE – O acidente que minha mãe sofreu foi por causa da senhora, Madame Zoraide.
CARTOMANTE – Como é?
RITINHA – Ela atropelou a senhora, mamãe. E vocês duas perderam a memória. 
CARTOMANTE – Isso eu sei. Então, foi ela? Minha memória só vai até o dia do acidente, nada mais que isso... Meu passado remoto é um mistério.
RITINHA – A senhora foi atropelada no dia que tinha descoberto o paradeiro do seu filho.
CARTOMANTE – Eu tenho um filho? Que história é essa, Rita? Só tenho você.
RITINHA – Não, mamãe. A senhora teve outro filho, que deu pra a adoção há muitos anos. Antes do acidente, a senhora vivia em busca dele. E tinha descoberto o paradeiro dele naquele dia fatídico.
CARTOMANTE – Você está querendo dizer que...
FELIPE – Que eu sou seu filho, Madame Zoraide!
ANGÉLICA – Não! Isso não é possível!!
FELIPE ABRAÇA A CARTOMANTE, QUE FICA PERPLEXA. ANGÉLICA PÕE A MÃO NA CABEÇA, PARECE SENTIR DOR.
 CARTOMANTE  - Eu tenho dois filhos, meu Deus!
RITINHA – Não, mamãe. Só tem um. Eu não sou sua filha!
FELIPE E CARTOMANTE  – O quê?
RITINHA – Eu fui adotada pela senhora para suprir a falta do seu filho verdadeiro. Também tenho investigado a minha vida inteira. E por essas coincidências que só acontecem em novela, a minha verdadeira mãe é... dona Angélica.
FELIPE E CARTOMANTE – Não!
RITINHA – E tudo o que eu queria saber era por que ela me abandonou quando nasci? E quem é meu pai?
TODOS OLHAM PARA ANGÉLICA.
ANGÉLICA – O que estou fazendo aqui? Que lugar é esse? Quem são vocês?

FIM.

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Com ou sem? - de César Amorim

NO RESTAURANTE...

AMANDA (ao telefone) – Tou esperando ele, amiga. Adorei a sugestão do lugar. Nenhuma mulher hétero à vista. Perfeito. Das últimas vezes só me dei mal. Tou na secura há meses. Dessa vez, vai. Beijo. 
GARÇON – Com licença. A senhora já quer fazer o seu pedido?
AMANDA – Não, querido. Estou esperando uma pessoa. Pessoa que digo é um homem, tá? Pra você não pensar que falei pessoa só pra não dizer que é outra pessoa do mesmo sexo, afinal aqui é um bar gay.  Marquei aqui porque sei que não terei concorrência. Ele é hetero e tal.  Aprendi isso com uma amiga lésbica. É um encontro, sabe? Nosso primeiro.  
GARÇON – Que bom. Vou deixar o cardápio com a senhora e assim que seu companheiro chegar eu volto. Fique à vontade.
AMANDA - Pode deixar, vou ficar à vontade. Com crase e tudo. 
GARÇON SAI. HUGO, UM HOMEM BONITO, ENTRA.
HUGO – Amanda?
AMANDA – Hugo! Que maravilha!
HUGO – Achei que fosse chegar antes que você.
AMANDA – É que vim fazer umas compras e tava aqui perto e resolvi ficar e tal. Veja bem, não tou ansiosa, de maneira alguma. Mas, parabéns, você foi pontualíssimo. Adorei.
HUGO – Eu “naisci” pontual.
AMANDA – Oi? O que você disse?
HUGO – Que “naisci” pontual. É de “naiscimento”.
AMANDA – Ah, tá! Uma piada. Tá imitando alguém que fala assim. 
HUGO – Assim como?
AMANDA – Deixa pra lá. Entendi. Sério. Foi engraçado. 
HUGO – Não conhecia esse “restorante”. É novo?
AMANDA – Esse o quê?
HUGO – “Restorante”. Esse lugar aqui.
AMANDA – Não, não é novo. Também não conhecia. Foi uma amiga quem indicou. Me diz uma coisa: você é o Hugo mesmo? Aquele que conversava comigo no Skype e tal?
HUGO – Ué? Tá me “instranhano”. Num tá vendo não? Igualzinho que nem na foto lá. Que nem na cam.
AMANDA – Pela foto e pela cam é você sim. É que não conversamos com áudio, né? Você só escrevia. E escrevia tão bem. 
HUGO – É verdade. Você “inté” que me “ilugiou”.
AMANDA – Você tá meio diferente pessoalmente. Falando estranho... É brincadeira, né?
HUGO – Não, eu falo assim mesmo. Num gostou da minha voz? 
AMANDA – Não. Você tem um timbre bonito. É que lá você falava tanta coisa legal. Tou só estranhando. Pensei que você ia me falar aquelas coisas lindas que você escrevia.
HUGO – Ah, aquilo tudo é “control C”, “control V”. 
AMANDA – Oi?
HUGO – Copia e cola. É tudo do Google. Num sei falar aquelas coisas bonitas não. 
AMANDA – Quer dizer que você me enganou?
HUGO – Não! Tudo o que eu falei lá era o que eu queria falar pra você, mas não ia ficar tão bonito com minhas “palavra”, entende? 
AMANDA – Que decepção, meu Deus. Mais uma.
HUGO – O que foi que fiz, gata?
AMANDA – Nada. Aí é que está. Você não fez nada. E isso é tudo. Você é todo errado. 
HUGO SE LEVANTA.
HUGO – Foi mal. Vou nessa.
AMANDA – Espera. Você é um gato. Que desperdício. Faz o seguinte: me diz uma coisa, só uma e posso perdoar tudo o que você falou até agora. 
HUGO – Manda.
AMANDA – Basta responder isso e eu perdoo tudo e a gente sai direto daqui pra um motel. Topa?
HUGO – Gata, tá brincando? Só tou aqui pra te levar pro motel. E olha que a grana tá curta. 
AMANDA – Eu pago tudo. Se você acertar, pago tudo. Me diz. Na frase “eu vou à praia” tem ou não tem crase?
HUGO – “Crasse”? Olha, depende da praia, né? Se for em Ramos, por exemplo, não tem “crasse” nenhuma. Agora, se for no Leblon já é outra história. Lá é “crasse” alta, né?
AMANDA – Crase! C-R-A-S-E! Não falei classe! Por favor, levante-se dessa mesa e vá embora. Você é uma fraude!
ENTRA O GARÇON.
GARÇON – Já querem fazer o pedido?
AMANDA – Eu quero! Esse senhor não! Ele já está de saída. 
HUGO – Você é maluca, gata! Maluquinha! Vai se tratar! Uma pena. Te gostei de verdade, sabia?
AMANDA – Vai à merda! Com crase e tudo!
HUGO SAI.
GARÇON  (constrangido) – Quando precisar de mim...
AMANDA – Eu preciso. Desculpe. Ele definitivamente era a pessoa errada. Deixa eu olhar o cardápio... Nossa. Tudo tão bem escrito. Raro ver um cardápio assim. Sem nenhum erro de português. Dê os parabéns ao dono do restaurante por mim. 
GARÇON – Quem agradece sou eu, senhora. Eu mesmo escrevi o cardápio. Já fui professor de português.
AMANDA – Não brinca! Você?
GARÇON – Sim. Trabalhava em Minas, ganhava uma miséria, daí vim pro Rio, fiz um curso no Senac de garçon e tou aqui agora. Ainda faço tradução e tou escrevendo um livro.
AMANDA – Olha, me deu até um calor, sabia?
GARÇON – Oi?
AMANDA – Senta um pouquinho comigo.
GARÇON – Não devo fazer isso...
AMANDA – Ah, o restaurante tá praticamente vazio. Só um minutinho. Queria te pedir uma coisa.
GARÇON SENTA.
AMANDA – Você tem papel e lápis, né? Então, queria que você escrevesse uma coisinha pra mim. 
GARÇON – Sim, senhora.
AMANDA – “Eu vou à praia”.  
GARÇON – Eu vou à praia?
AMANDA – Isso. Escreve. E escreve também “eu vou a Roma”.
GARÇON – Ok. Prontinho.
AMANDA – Deixa ver. Certíssimo. Por que você vai à praia com crase e a Roma sem?
GARÇON – Porque o verbo “ir” exige a preposição “a”e a palavra “praia” exige o artigo “a”. Na junção das duas, ocorre a crase. Já na segunda frase, a palavra “Roma” não exige artigo, então o “a” é só preposição, não tem crase. Entendeu?
AMANDA – Eu tive um micro orgasmo agora. 
GARÇON - Perdão?
AMANDA - Você é casado?
GARÇON – Não. 
AMANDA – Delícia. Tá carente?
GARÇON – Um pouco.
AMANDA – Eu também. Rola alguma coisa comigo?
GARÇON – Desculpe. Comigo só rôla.
AMANDA – O quê?
GARÇON – Rôla. Pau. Cacete. Pênis. Entendeu? Sou gay, mona.
AMANDA – Quer saber? Foda-se a crase. Foda-se o português. Tou precisando de um homem, no sentido macho da palavra. Com licença.
AMANDA FICA DE PÉ.
AMANDA – Hugo!! Se você ficar caladinho, a gente transa!! Eu me dou a você. Sem crase!!
E SAI CORRENDO.

FIM





Posso devolver? - de César Amorim.

JONAS (fala de boca cheia) – Foi boa ideia vir jantar na laje, Sandra. Lá dentro tá um calor do cão.
SANDRA – Tá puxado, Jonas. Tá puxado. Engole primeiro, “hôme”.
JONAS – Qual é? Vai dar uma de educada agora?
SANDRA – Não é porque a gente “somo” pobre que não “podemo” ter educação. Fecha essa boca pra mastigar, “hôme”.
JONAS – Agora você tá incomodada. Quando “casamo” você disse que gostava do meu jeito bruto, de macho e tal. 
SANDRA – Eu “involuí”, tá? Não fiquei parada no tempo. E de mais a mais, não tive escolha. Embuchei e tive que casar com você. O tempo não volta atrás, meu filho.
JONAS – São essas “revista” aí que você vive lendo, essa tal de “Marricléri”, que custa os olho da cara. Tudo botando coisa na tua cabeça. E esses “pograma” aí da TV. Essa Fátima Bernardes, essa Sônia Abrão, essa Ana Maria... Tudo mulher que não tem o que fazer. 
SANDRA – Tudo bem casada, meu filho.
JONAS – A Ana Maria? Com aquele cabelo? Só se for com o Louro. E a Sônia? Só se for com um coveiro. Eu, hein!
SANDRA – Mas a Fátima é perfeita. Marido lindo. Família linda. E educada. Duvido que na casa deles alguém coma de boca aberta.
JONAS – Comer de boca aberta é a intimidade máxima. Só se come de boca aberta na frente de quem a gente “amamos”. 
SANDRA – Então, meu filho, você ama o universo “tudinho”.  Porque você num fecha a boca nem pra dormir.  
JONAS – Vai me “dizê” que eu como de boca aberta nos restaurantes que a gente “vamo”?
SANDRA – Restaurante? Ah, tá, você tá falando do Bob’s?
JONAS – E não é restaurante? Teve mesa, cadeira, comida e bebida é restaurante. Vai dizer que não?
SANDRA – O Bob’s não conta. No Bob’s, o estranho é comer de boca fechada. Tou falando de restaurante caro.
JONAS – E o Bob’s é o quê? Sabe quanto tá o Big Bob? Só com o preço da promoção número 1 a gente alimenta as “criança” aqui de casa por uma semana. Tá por fora.
SANDRA – Tá certo, não vou discutir educação com você.  Tenho o dedo podre pra “hôme” mesmo, meu Deus. Só querida ter outra chance. Que castigo!
JONAS – Eita, olha lá no céu, olha! Uma estrela “decadente”! Faz um pedido, Sandra, faz!
SANDRA E JONAS FECHAM OS OLHOS.
JONAS – E aí, o que foi que você pediu?
SANDRA – Um sonho impossível. 
JONAS – Eu não pedi nada de impossível que não sou besta. Quer saber o que eu pedi?
MÚSICA ETÉREA. FUMAÇA. MUDANÇA DE LUZ.  ENTRA UMA FADA. 
FADA – Olá, quem é a Sandra? Ah, só pode ser você. Claro. Sandra. Mulher. Mulher aqui, além de mim, só você. 
SANDRA E JONAS – Quem é você?
FADA – Sou a Fada do Cometa. Vim realizar o seu sonho, Sandra. 
JONAS – Fada? Só se for do bonde das saFADA. Com essa cara de piranha...
SANDRA – Cala a boca, Jonas! Você é fada mesmo?
FADA – Em luz e pozinho mágico.
JONAS – Pozinho? Eu sabia! Essa fada tá cheirada, Sandra. 
FADA – Vamos, Sandra. Não tenho muito tempo. Você fez o seu pedido e eu trouxe o meu catálogo pra você escolher. 
JONAS – Catálogo? É da Avon, Natura? Eita, não inventa não, hein, Sandra! Num tou podendo gastar mais nada esse mês. Deixa pra outro dia, dona Fada.
FADA – É... Vendo o shape desse seu marido compreendo bem o motivo do seu pedido. Então, dá uma olhada nesses homens maravilhosos. Qualquer um deles pode ser seu. É só falar.
JONAS – “Hôme”?  Você pediu pra me trocar por outro, Sandra?
SANDRA – Pedi sim! Tá? Pedi. Tem algum mal a gente “querermos” mudar de vida? A gente “querermos” o melhor pra consigo mesmo?
FADA – Nunca é tarde para se ter bom gosto, querida. Você está certa. Vamos, escolha que ainda tenho várias clientes insatisfeitas com o marido que precisam de mim.
SANDRA – Nossa! E tá assim a procura? Vem cá, tem alguém famoso?
FADA – Ih, a maioria é famoso, coração. A Gretchen é minha maior cliente. Já precisou de mim umas oito vezes.
JONAS – Essa só com mágica mesmo.
SANDRA – Deixa ver o catálogo. Nossa! Tem muita opção. Todos educados?
FADA – Educadíssimos.
JONAS – Educadíssimos? Homem educadíssimo é boiola. Vai trocar um macho que nem eu por um baitola?
FADA – Olha, sem ofensas, tá? Tenho amigos FADOS que têm uma orientação sexual diferente da considerada convencional e não admito esse tipo de tratamento. Na minha terra, é crime.
JONAS – Que terra é essa?
FADA – Terra do Nunca.  
JONAS – Até na Terra do Nunca já é crime? O Brasil tá atrasado mesmo. Olha, eu não quis ofender não. Foi mal aí. Eu “inté” que votei no “Jan Uíliz”.
FADA – E aí, Sandra? Já escolheu? 
SANDRA – Já. Quero esse aqui.
FADA – Tudo a ver.
SANDRA – Sou pobre, mas bom gosto não me falta. Isso é que dói.
FADA – Então, vamos lá. 
JONAS –  Poxa, Sandra, tu vai fazer isso mesmo, minha gata?
SANDRA – Vou sim, Jonas. Não dá mais. Tou cansada de sofrer a vida inteira por uma escolha errada que fiz lá atrás. Tenho uma mulher chique e “sosfisticada” dentro de mim que não aparece por sua causa.
FADA – Então, vamos lá. Eu troco o Jonas pelo... pelo... pelo...
SANDRA – Por esse aqui.
FADA – Não consigo dizer o nome. Estranho. O nome não sai. Travei. Parece que tem alguma magia impedindo. Já sei. Há um choque de pedidos. Recebi dois diferentes vindos daqui. O que foi que você pediu, Jonas?
JONAS – Na real? (Tempo). Pedi pra ficar casado pra sempre com a pessoa que me faz o homem mais feliz do mundo. 
SANDRA – Puxa, que lindo! E essa pessoa... sou eu?
JONAS – Quem mais, minha princesa?
SANDRA – Ai, Jonas... Você não existe, sabia? Tem essas “atitude” tão “bunita” e outras “grosseria” que “inté” desanima a gente. 
JONAS – Sou um “serumano”, poxa. Mas te gosto muito, minha gata.
SANDRA – Dona Fada, desculpe ter trazido a senhora até o alto desse morro, mas o pedido dele ganhou. Ele não é um sonho, mas é real e me gosta. Do jeito dele, mas me gosta. 
JONAS – E tu? Não gosta de mim? Nem um pouquinho?
SANDRA – Te amo, traste. Te amo.
SANDRA E JONAS SE BEIJAM.
FADA – E ainda tem a cara de pau de dizer que tem bom gosto. Olha quem ela escolheu. (Ela mostra a foto do João Kléber). Bem, deixa ver... Próxima cliente. Uma tal de... Suzana. Atriz. Quer um marido jovem. Essa sabe o que é bom.
BLACK OUT.
FIM.

Barrada na Disneylândia

De César Amorim.

BABI se encontra com PEDRO. Ela está com um boné da Minnie. Ele, de barba, cabelos longos e túnica branca, está com um tablet.
BABI – Que lindo, meu Deus! Que lindo! 
PEDRO – Bom dia, senhora. Bem-vinda ao ...
BABI – Disneylândia!! Gente, que escândalo. É a minha primeira vez, sabe? Tou muito excitada. Sonho de criança. E esse portão imenso aí? É lindo! Vocês estão vendo isso, meninos? Ué, cadê o meu marido e os meus filhos? Cláudio! Júnior! Maria Luísa! Gente, eu me perdi deles? 
PEDRO – Com licença. Posso verificar o seu nome? (Pedro consulta o tablet). Senhora Bárbara de Castro Gonzaga, não é isso?
BABI – Gente, que luxo! Realmente, vocês aqui são impecáveis. Pelo horário da minha chegada vocês sabem quem eu sou! Perfeito.
PEDRO – Ah... A senhora ainda não...
BABI – Posso tirar uma selfie com o senhor? Preciso postar isso. Essa caracterização tá ótima. Qual o nome desse parque mesmo?
PEDRO – Parque? Ah... É... Bom, pode chamar de... Dog’s Lândia, digo, God’s Lândia. 
BABI – Nome perfeito. Esse portão parece mesmo a entrada do céu. Amei. Mas todos os personagens tão aí dentro, né? Quero ver todos. Chega mais pertinho de mim, “seu”... Qual seu nome mesmo?
PEDRO – Pedro.
BABI – Gente, claro. São Pedro. O porteiro. Junta mais, meu braço é curto. 
Ela tira uma selfie com Pedro. 
BABI – Pronto. Ficou ótima. Peraí. Ai, merda, tá sem conexão. 
PEDRO – Não admitimos palavrão aqui, senhora. O nome da nossa rede é Dog. E a senha é 666. 
BABI – Ah, Dog! Dog, God, que criativo. Achei. 666. Pronto, conectei. Engraçado... Aqui só tem um tal de...
PEDRO – Dogbook. Não usamos Facebook aqui. Nossa rede social é única e diferenciada.
BABI - Que maluco. Vocês são incríveis. Eu já tenho até perfil nesse tal de Dogbook. Adorei. A foto de capa também tá ótima. Meu olho tá meio vermelho, mas tá ótima. Deixa eu postar a nossa foto, São Pedro. (Ela começa a postar). “Na entrada da no”... nota não... novela... não... saco de corretor automático... nova! Isso. “Na entrada da nova atração da Di”... Disco não... Dinheiro não... Saco! Disney!! Perfeito. Vem cá, tem algum sistema de som aqui que eu possa chamar meu marido?
PEDRO – Tá nas suas mãos, senhora.
BABI – Oi?
PEDRO – Pelo Dogbook a senhora pode chamar quem quiser. Seu marido e seus filhos iriam demorar pra vir, mas, se a senhora os convidar pra jogar nosso jogo, eles aparecerão rapidinho.
BABI – Tipo Candy Crush, FarmVille? 
PEDRO – Exato. Ele se chama... é... Dead Crash.
Som de um carro derrapando e batendo.
BABI – Ai, adoro!! Meu marido e meus filhos também são fissurados. Como é que faz?
PEDRO – A senhora precisa de vidas: conquistar ou doar. Se a senhora conquista vidas, vive de novo. Se doa, a pessoa demora mais pra chegar aqui. A escolha é sua.
BABI – Ah, não! Eu não vou doar vida coisa nenhuma. Quero entrar logo nesse parque.  
PEDRO –  A senhora manda a solicitação de vida e automaticamente eles dão a vida deles para a senhora. E aparecem aqui em dois tempos.
BABI – Que delícia. Vou pedir vida ao meu marido primeiro. (Ela tecla no celular). E... Foi!
Entra CLÁUDIO, o marido. Música de abertura da novela A VIAGEM.
BABI – Amoorrr!! Que alegria!! Esse jogo funciona mesmo.
ClÁUDIO – Babi!! Meu amor! O que você fez?
BABI – Eu pedi vida a você! E você apareceu. Simples assim. 
CLÁUDIO – Você não podia ter feito isso. Os nossos filhos estão sozinhos agora, meu Deus. Sem pai nem mãe.
BABI – Você deixou eles com quem? Cadê eles, Cláudio?
CLÁUDIO – Babi, amor. Eu tava dormindo e recebi seu chamado. Mas não queria vir. Ainda não.  Eu não posso deixar nossos filhos sozinhos, eles ainda são crianças. E já faz tanto tempo que você nos deixou...
BABI – Deixei? Querido, eu cheguei aqui agora, tava esperando vocês pra entrar. Olha só a entrada desse parque. As crianças vão adorar!
CLÁUDIO (para Pedro) – Ela pensa que tá onde?
PEDRO – Na Disneylândia.
CLÁUDIO – Ah, meu Deus, foi no dia que aconteceu.  Você não falou nada pra ela?
PEDRO – São as regras da casa. Não posso dar esse choque nas almas que chegam. Algumas, como você, percebem a viagem, são mais espiritualizadas; outras, como ela, sem fé, vêm de supetão, estão em outra vibe. Demoram a descolar da matéria. Tenho que dar tempo para que elas mesmas se deem conta. 
BABI – Do que vocês estão falando? Cláudio, as crianças ficaram com quem?
CLÁUDIO – Sozinhas, em casa.
BABI – Em casa? Que piada é essa? 
CLÁUDIO – Amor, escuta. Lembra que estávamos indo para o Epcot Center?
BABI – Claro. Mas acabei chegando aqui.
CLÁUDIO – Você chegou aqui porque nosso carro bateu. Você estava dirigindo, foi tirar uma selfie com a família enquanto dirigia, saiu da pista e bateu. 
BABI – Não lembro.
CLÁUDIO – Por isso você está aqui agora. Eu e as crianças tivemos ferimentos leves, mas você...
BABI – Morri?
CLÁUDIO – E acabou de me matar. 
PEDRO – Tá com um carma muito pesado, minha filha.
BABI – Peraí! Eu não tava sabendo de nada. Que porra é essa, São Pedro?
PEDRO – Olha o vocabulário...
BABI – Vocabulário o cacete! Por que não me contou? Por que deixou que eu trouxesse meu marido pra cá? Como vão ficar nossos filhos?
PEDRO – Você tem a solução. Basta chamá-los.
CLÁUDIO – Não! Matar nossos filhos também? Não faça isso.
Pedro e Cláudio passam a falar ao mesmo tempo. Confusão.
BABI – Chegaaaaa!! Eu não vou deixar meus filhos serem jogados num orfanato! Eles precisam da mãe e do pai junto deles, Cláudio. (Ela aperta uma tecla no celular). Pronto, salvei eles do mundo. 
CLÁUDIO – Não, isso não!!
Pedro começa a rir muito. Som de trovão. Raios. Fumaça.
CLÁUDIO - Você não pode ser São Pedro. Isso não é coisa de Deus.
Pedro tira a barba e a peruca e revela dois chifres.
PEDRO (demoníaco) – E não é mesmo, seus idiotas. Eu não sou São Pedro. Assumo a forma que eu quero. Você não está no céu, sua otária. Você achou mesmo que no céu tinha celular, wifi, rede social? Rede social não é coisa de Deus. Candy Crush, FarmVille não são de Deus!!  Você matou seus filhos, mas não vai vê-los. Você precisava de vidas pra viver, lembra? Agora você vai viver, vai voltar à vida, sozinha! Seu marido e seus filhos vão ficar aqui comigo. Pra sempre!
BABI e CLÁUDIO – Não!!
BABI – Isso não é justo. Eu fui enganada. Essa história não pode acabar assim. 
PEDRO – Pode sim. Eu posso tudo. Quer ver? (Olha para a plateia). Fim!
BLACK OUT.
VOZES DE CRIANÇAS (OFF) – Mamãe!!

FIM.




NÃO, EU DISSE NÃO.
De César Amorim.
DO FUNDO DO PALCO, WANDERLÉA, COM UM ANEL DE LUA E ESTRELA NO DEDO, ENTRA DE PRETO, SEGURANDO UM BUQUÊ DE FLORES, E PARA NO PROCÊNIO. ELA ESTÁ MUITO TRISTE.
WANDERLÉA – Escolha e perda. Uma não vive sem a outra. Perder pra mim é como ser amputada. Quando terminei meu noivado com o Erasmo, semana passada, em pleno altar, por causa do Roberto, saí por cima. Mas bastou descer os degraus da igreja pra me sentir amputada. Eu tenho um sonho recorrente: eu, toda de preto, numa penitenciária de segurança máxima, numa cela minúscula, com um número 30 na porta e sendo chamada de balzaquiana pelas outras detentas. Acho que isso é um presságio. Não casar, pra mim, é o isolamento social. Todas as minhas amigas se casaram antes dos 30. E eu tenho que seguir o padrão. Sou muito focada, corro atrás dos meus objetivos. Foi assim quando perdi a virgindade. Escolhi a vítima, mirei e fui com tudo. Foi uma merda. Não perdi a virgindade com ele. Eu tinha o hímen complacente. Perdi pro médico que me operou. E, claro, quase me apaixonei perdidamente por ele. Um bisturi na minha vagina e eu fantasiando com o homem, gente. Com o homem que me amputou. Bom, eu achava que isso não importava mais. Que o que importava era que ali estava eu no enterro da Sarah Jéssica. Por causa da morte da minha melhor amiga, eu podia estar deixando de conhecer o homem da minha vida. O nick, as fotos, o papo, tudo me levava a crer que ele podia ser O cara. Eu enterrava a minha cadelinha e pensava nisso. Fazer o quê? Escolhas. Perdas. Amputações.
ELA, MUITO EMOCIONADA, COLOCA, DELICADAMENTE, O BUQUÊ NO CHÃO E FAZ UMA ORAÇÃO SILENCIOSA. DO FUNDO DO PALCO, ENTRA CAETANO, CERCA DE 40 ANOS, TAMBÉM DE PRETO, ÓCULOS ESCUROS, COM UMA ROSA NAS MÃOS E PARA AO LADO DELA. ELA NÃO O PERCEBE DE IMEDIATO. ELE DEPOSITA A ROSA AO LADO DO BUQUÊ, NO CHÃO.
CAETANO – Vai fazer muita falta.
WANDERLÉA – Oi?
CAETANO – Sarah Jéssica. Era uma boa companheira.
WANDERLÉA – Você conhecia a Sarah Jéssica?
CAETANO – Claro. Uma alma boníssima. E de uma fidelidade, desculpe o trocadilho, canina.
WANDERLÉA – Obrigada, mas quem é você?
CAETANO – Um velho amigo da família.
WANDERLÉA – Eu sou a família da Sarah Jéssica e ela nunca me falou de você.
CAETANO – É... normal. Compreensível. Ela tinha certa dificuldade em pronunciar o meu nome.
WANDERLÉA – Olha, legal, você é super espirituoso, mas eu não tou com clima pra brincadeira. Fala logo quem você é.
CAETANO – Prazer, “Mulhersolteiraproocura29”, eu sou o “Ultimoromanticorj”.
WANDERLÉA – Meu Deus, você é o... Não, não pode ser.
CAETANO – Por quê? Tou tão diferente assim?
WANDERLÉA – Não, não é isso. Quer dizer, é isso também. Você não tem nada a ver com a foto. E eu não te disse que ia enterrar minha cachorra. Como você...?
CAETANO – É, a foto não me valorizou o suficiente.
WANDERLÉA – Pelo contrário, ela te valorizou demais. Querido, aquela foto não é sua.
CAETANO – Claro que é. Eu tirei ela. Sou fotógrafo. É minha.
WANDERLÉA – Isso é alguma piada? Você colocou uma foto... não, uma só não, você colocou várias fotos de um cara que não tem nada a ver com você. E... espera... eu acho que te conheço. Tira os óculos.
ELE, LENTAMENTE, TIRA OS ÓCULOS.
WANDERLÉA – Eu te conheço sim! De onde, meu Deus?
CAETANO – Eu fui o primeiro homem da tua vida.
WANDERLÉA – Como é?
CAETANO – Você não pode ter esquecido. Não se esquece uma coisa dessas.
WANDERLÉA – O que você tá dizendo é impossível. O meu primeiro homem foi o meu primeiro namorado.
CAETANO – Não. Não foi teu namorado. O teu primeiro homem fui eu. Eu sei, e você sabe que eu sei. Esse cara pode ter sido o teu primeiro amor, mas o homem que te fez mulher fui eu.
WANDERLÉA FICA CHOCADÍSSIMA.
WANDERLÉA – Meu Deus!
CAETANO – Eu marquei demais, tou sabendo.
WANDERLÉA – Você foi o meu... o meu ginecologista! Doutor...
CAETANO – Caetano. Eu fui ou não fui teu primeiro homem?
WANDERLÉA – Claro que não.
CAETANO – Não foi isso que você me disse no consultório, na hora em que eu estava tirando tua virgindade.
WANDERLÉA – Eu era uma garota. Romântica. Você era bonito, carinhoso, atencioso. E eu de pernas abertas, carente, vulnerável. Gente, qualquer menina fantasiaria.
CAETANO – E qualquer homem se excitaria.
WANDERLÉA – Não, só os doentes como você.
CAETANO – Não fala assim. Você foi a primeira mulher que tirei a virgindade. E a última. Nunca mais peguei um caso de hímen complacente. E todas as namoradas que tive já haviam dado pra outros. Umas piranhas, vagabas, vampiras, mesquinhas. Você não. Você é o meu vício, desde o início.
WANDERLÉA – Que vício, gente? Início do quê?
CAETANO – O início da nossa relação. Do nosso caso de amor.
WANDERLÉA – Que amor, garoto? Que amor? O nome disso é obsessão.
CAETANO – O nome disso é amor verdadeiro. E não aquilo que aquele idiota do Erasmo sentia por você.
WANDERLÉA – Você sabe do Erasmo?
CAETANO – E do Roberto. Eu tava na igreja... fotografando. O Erasmo me contratou. Eu não esperava aquele show. Roberto dizer que tava amando loucamente a namoradinha do melhor amigo foi demais. E as fotos da cara do Erasmo ouvindo isso ficaram impagáveis.
WANDERLÉA – Você tava me seguindo? Mas, no dia do meu casamento, a gente não tinha teclado ainda.
CAETANO – Claro que já. Eu não sou o único amigo virtual que você tem. Prazer, eu também sou a “Jéssicacarente” e a “Mulherprecisadehomemjá”.
WANDERLÉA – Não! Não é possível. Elas são as minhas melhores amigas virtuais! Eu vi as fotos delas.
CAETANO – Lindas, não? São minhas modelos. Assim como o rapaz que emprestou o corpo pra ser eu. Fotografar é um dos meus hobbies.
WANDERLÉA – Mas como? Não me diz isso! Elas não podem ser de mentira. Elas fazem parte da minha vida. Eu amo elas.
CAETANO – Eu sabia que ia ouvir isso de você. Eu também te amo.
WANDERLÉA – Desde quando você me persegue?
CAETANO – Desde quando você ganhou esse anel.
WANDERLÉA – O que é que tem esse anel?
CAETANO – Era da minha mãe. Estava no penhor e foi a leilão. O Erasmo arrematou e te deu de presente. Eu tentei dar o maior lance, mas ele venceu. Aquele filho da puta tirou a última lembrança da minha mãezinha. Eu tinha prometido a ela, no leito de morte, que iria trazer o anel de volta pra nossa família. E foi o que tentei fazer. Passei a seguir o Erasmo e vi o dia em que ele te deu e te pediu em casamento. Eu não acreditei. Te reconheci de imediato. A mulher que eu desvirginei estava usando o anel da minha mãe. Era um sinal. Minha mãezinha me levou até você, meu amor.
WANDERLÉA – Olha, é realmente linda a sua psicopatia, tocante, mas eu não posso cuidar de você. Sou atriz e o máximo que me aproximei de gente maluca foi fazendo teatro empresa nas plataformas da Petrobrás. Saia daqui, por favor. Eu não quero nada com você.
CAETANO – Mas eu sou ideal pra você. Eu correspondo perfeitamente às três principais qualidades que você procura num homem. Primeiro, sou heterossexual, convicto. Segundo, tenho bons dentes. Meses no dentista pra ficar do jeito que você gosta. E terceiro e o motivo maior da minha demora em me revelar.
ELE TIRA UMA PÁGINA DO DIÁRIO OFICIAL DO BOLSO.
CAETANO – Sou empregado público. Depois de anos estudando passei em primeiro lugar no concurso pra médico do estado. Saiu hoje o resultado. Tá aqui, ó, o Diário Oficial. Tá vendo? Melhor partido do que eu não há. Então, vamos?
WANDERLÉA – Pra onde?
CAETANO – Pra nossa casa. Vai, fala que sim.
WANDERLÉA – Você é uma criatura, no mínimo, apavorante. Vem com esse olhar de maníaco sexual, no enterro da minha cadela, querendo que eu diga sim? Pois bem, leia nos meus lábios, Norman Bates. A minha resposta é NÃO! Eu disse NÃO!
CAETANO – E eu digo sim. Eu digo não ao não.
WANDERLÉA – Esse papo seu tá qualquer coisa. Você tá pra lá de Marrakesh, seu doente.
CAETANO – Doente? Quem é mais doente aqui? Eu, que amo você à distância há anos e que sei tudo da sua vida, que te conheço bem, ou você, que quer casar com um homem qualquer em poucas semanas só pra não chegar aos 30 anos solteira? Me diz, quem é mais doente?
WANDERLÉA – Tá, tudo bem, estamos competindo pelo ouro, mas não vou me casar com um homem qualquer, vou casar com o homem certo. E ele, definitivamente, não é você.
CAETANO – Acho que a sua certeza acaba hoje. Aqui. Se o seu homem certo não sou eu, não será mais ninguém. Nós dois, juntos, vamos fazer companhia a Sarah Jéssica.
ELE RETIRA UM PUNHAL DO BOLSO, ENROLADO NUM LENÇO, E MOSTRA PRA ELA.
WANDERLÉA – Esse punhal é meu. Foi do meu pai. Onde você conseguiu?
CAETANO – Numa das muitas vezes em que fui te ver dormindo no teu quarto. Ainda tem tuas digitais. Foi uma troca justa. O anel da minha mãe pelo punhal do teu pai.
ELE PARTE PRA CIMA DELA, SEMPRE SEGURANDO O PUNHAL COM O LENÇO. ELES LUTAM, ELA PEGA O PUNHAL E ELE SE JOGA SOBRE ELE, SENDO ATINGIDO.
WANDERLÉA – Ai, meu Deus! Olha que você fez! Socorro! Alguém ajuda aqui!
CAETANO – Você me matou!
WANDERLÉA – Não, você quis me matar, eu só...
CAETANO – Não é o que meus amigos vão pensar. Eles sabiam da nossa relação. E sempre souberam da sua obsessão por mim. Eu era ameaçado por você durante anos e hoje iria vê-la pra resolver essa história.
WANDERLÉA – Isso é mentira!
CAETANO – Fala isso pra polícia. Homicídio doloso. Premeditado. Trinta anos de prisão.
WANDERLÉA – 30 anos! O meu sonho, meu Deus!
CAETANO - Eu te amei tanto, meu bem... meu mal...
ELE MORRE E ELA GRITA.
CONTINUA...
FIM.
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EU QUASE DISSE SIM.
(inspirado na música Cowboy Fora da Lei, de Raul Seixas)
De César Amorim.
SOM DE VENTO, DE UIVO DE LOBO. WANDERLÉA, DE PRETO, ESTÁ DEITADA NUMA ENORME CAMA DE CASAL. AO SEU REDOR, VÁRIAS VELAS. CLIMA SOMBRIO. SE POSSÍVEL, FUMAÇA. ELA SE CONTORCE COMO SE ESTIVESSE TENDO UM PESADELO. DE REPENTE, ACORDA GRITANDO.
WANDERLÉA – Ahhhhh! Dr. Caetano, não!!
ELA PERCEBE QUE ESTAVA DORMINDO.
WANDERLÉA – Meu Deus! Que pesadelo horrível!
SÓ ENTÃO, ELA SE DÁ CONTA DE ONDE ESTÁ.
WANDERLÉA – (olhando em volta) Agora fiquei na dúvida. Eu estava tendo um pesadelo ou estou tendo um agora? Que lugar é esse?
ENTRA RAUL, UM HOMEM BONITO, CHARMOSO, SEDUTOR, UM POUCO ANDRÓGINO, LEVEMENTE AFEMINADO, CERCA DE 35 ANOS, USANDO UM TERNO ESCURO MUITO ELEGANTE. ELE TRAZ CONSIGO UM COELHO BRANCO DE PELÚCIA, QUE NUNCA SOLTA.
RAUL – Ah, você já acordou, mon cherry.
WANDERLÉA – Antes de você se aproximar, só me responde uma coisa: eu estou dormindo ainda, não estou?
RAUL – Não, apesar de que, pra mim, a sua presença aqui é um sonho. Estamos os dois muito acordados.
WANDERLÉA – Quem é você? Que lugar é esse? O que aconteceu?
RAUL – Você matou um homem.
WANDERLÉA – Matei? Então, não era sonho.
RAUL – Não, infelizmente, ou felizmente, não.
WANDERLÉA – Então, tudo o que eu pensei que tivesse sonhado foi real? Eu realmente abandonei o Erasmo, meu noivo, no altar, enterrei minha cachorra... Meu Deus... então, a Sarah Jéssica morreu mesmo? E matei o Dr. Caetano?
RAUL – Legítima defesa. Eu vi. Você não foi culpada.
WANDERLÉA – Você viu? Você tava por perto e não fez nada?
RAUL – Eu não sou besta pra tirar onda herói, meu bem. O que queria que eu fizesse? Que impedisse o derramamento de sangue fresco? É pedir demais pra mim.
WANDERLÉA – Que lugar é esse? Como vim parar aqui?
RAUL – Você desmaiou. Viu o homem agonizando, viu o sangue escorrendo e caiu. Só não tocou o chão porque eu te segurei.
WANDERLÉA – Por favor, vamos até a polícia e você testemunha que eu não fui culpada.
RAUL – Não posso, meu bem. Não posso me expor. Você não sabe como uma estaca no peito doi. (Fala para o coelho): Nós dois sabemos.
RAUL ABRAÇA O COELHO DE PELÚCIA.
WANDERLÉA – Que estaca, gente? Por favor, me ajuda!
RAUL – Não me envolvo em problemas alheios. Os que eu tenho, já me bastam. Eu não posso ser visto. Também estou sendo procurado e, acredite, diferentemente de você, eu sou culpado.
WANDERLÉA – Você é um assassino?
RAUL – Palavra forte. Não mato por prazer, mas por necessidade.
WANDERLÉA – Isso tá parecendo um episódio do Dexter. Quem é você?
RAUL – Já nos conhecemos.
WANDERLÉA – Ah, não, de novo não. Não me diga que você é outro maluco do MSN como o Dr. Caetano.
RAUL – Não. Eu te vendi as flores para o enterro da sua cachorra. E para o seu casamento.
WANDERLÉA – Você? Claro que não. Quem me vendeu foi um velhinho muito simpático, o seu Raul. Sempre compro flores dele.
RAUL – É assim que apareço à luz do sol, meu bem. O dia revela a minha verdadeira idade. Eu sou o mesmo Raul.
WANDERLÉA – Meu Deus, estou sendo amaldiçoada, só pode ser. Isso é praga do Erasmo. Depois dele só me aparece maluco, Jesus! Escuta aqui, Raul ou seja lá quem você for, pensa que eu sou alguma idiota? Que papo é esse de luz do dia? Você é um vampiro, por acaso?
RAUL – Conde Raul Vlad, a seu dispor. E este é o meu amigo inseparável, Paulo, o coelho. Cumprimente a minha Sarah, Paulo.
WANDERLÉA – Que Sarah, seu maluco? Que Sarah? Meu nome é Wanderléa!
RAUL – Não. Seu nome é Sarah Jéssica, minha noiva.
WANDERLÉA – Não, querido, Sarah Jéssica era o nome da minha cachorra.
RAUL – Sim, mas também era o seu nome nas outras encarnações pelas quais você passou. Por que você acha que o nome da sua cachorra era Sarah Jéssica? Por que você gosta tanto desse nome? Está no seu subconsciente.
WANDERLÉA – (irônica) Ai, que ótimo. Adorei essa história. Conta mais, Nosferatu.
RAUL – Seu nome não é Wanderléa. A sua mãe dessa vida te deu esse nome por ser fã incondicional da Jovem Guarda. Seu nome real, que remonta ao início dos tempos, é Sarah Jéssica. A minha mísera existência consiste em buscá-la através das suas reencarnações. É um sacrifício descobrir onde você vai nascer de novo. Fico pulando de país em país até reencontrá-la, lhe explicar tudo e tentar lhe conquistar novamente. Tenho feito isso durante séculos. É bem cansativo. Mas o que posso fazer? É isso ou ficar dentro do meu caixão esperando anoitecer e sair pra jantar. E jantar sozinho não tem a menor graça. (Para o coelho): Sem querer lhe ofender, amigo.
WANDERLÉA – (se divertindo) Quer dizer que eu já morri outras vezes e você não?
RAUL – Eu nasci há dez mil anos atrás, meu amor. Mas você não. Há dez mil anos eu estou tentando morder seu pescoçinho pra torná-la imortal como eu, mas nunca consigo. Você é uma mulher difícil. Mas eu gosto disso. A sua teimosia, a sua descrença, me mantém vivo, vibrante, com um objetivo.
WANDERLÉA – Ok, já entendi tudo. Outro obcecado por mim. E olha que não tenho tantos seguidores assim no Twitter
RAUL – Você não acredita, não é?
WANDERLÉA – (muito irônica) Claro que acredito. Você é um vampiro, esse coelho de pelúcia é seu melhor amigo, eu sou sua amada de outras vidas e estou... é... onde mesmo? No seu castelo?
RAUL – No meu mausoléu. E vou te provar que falo a verdade.
WANDERLÉA – Faz o seguinte. Me adiciona no Facebook e me conta tua história por lá, tá? Tenho que ir à polícia. Se você não pode me ajudar, não me atrapalha.
ELA VAI SAINDO.
RAUL – Por que você acha que tem essa obsessão toda de casar antes dos trinta?
ELA PARA E SE VOLTA PARA ELE.
WANDERLÉA – Oi?
RAUL – Eu sei de tudo. Trinta anos é a idade com que você sempre morre. E em todas as outras encarnações, você morreu virgem. Por isso você não conseguiu perder a virgindade com seus namorados nessa vida. Por isso você teve que recorrer à cirurgia de remoção do seu hímen complacente. Por isso você conheceu Dr.Caetano, que te desvirginou. Por isso ele ficou tão obcecado por você, porque, no íntimo, ele sabia que você o traria até mim. Mas você o matou antes, meu amor. E eu pude beber o sangue do meu algoz. Dr. Caetano era a reencarnação de Van Helsing, meu caça vampiros mais famoso. Entendeu agora? É por isso você precisa tanto casar antes dos trinta. Você só acredita que pode ser feliz se ultrapassar essa barreira.
WANDERLÉA - (não querendo acreditar, mas acreditando) E o Erasmo? Por que eu deixei ele no altar? Eu estava prestes a me casar. E por que não quis casar com o Roberto que se declarou pra mim na hora do casamento?
RAUL – Erasmo era um bossal. Dizia que era heterossexual, mas não era. Já tinha dado vários “closes” em travestis. E a sua intuição aguçadíssima lhe dizia isso. E o Roberto... Bem... você mesma disse que ele não tinha bons dentes. Vê? Você procura homens com bons dentes. Bons caninos. Como eu.
WANDERLÉA – Mas você não é funcionário público concursado. Não tem estabilidade.
RAUL – Eu sou riquíssimo. Sou um conde. Minha fortuna é incalculável.
WANDERLÉA – Isso é bom. Mas, pelo que sei, segundo a lenda, vampiros são bissexuais. E aí? Vai assumir agora ou só quando eu te pegar no flagra com algum amigo meu? Eu sou atriz e vivo cercada da comunidade LGBTTIS.
RAUL – (revoltadíssimo) Isso é lenda, ouviu bem? Lenda! Eu sou espada! Só corto de um lado. Essa história de bissexualidade é coisa do Van Helsing, que queria macular minha imagem de macho pegador com as mulheres.
WANDERLÉA – Tá bem, digamos que eu acredite nessa história estapafúrdia. E virar morcego? E lobo? Você vira?
RAUL – Está ouvindo o que eu sempre lhe digo, Paulo? Hollywood, realmente, destruiu a reputação de toda a minha raça. “Crepúsculo”, “Lua Nova”, “True Blood”, “Entrevista com um Vampiro”, “Fome de Viver”, tudo uma grande palhaçada. Esqueça tudo isso. Eu sou o vampiro real. Não sou uma metamorfose ambulante.
WANDERLÉA – Que pena. Pois eu prefiro ser uma metamorfose ambulante.
RAUL – Pois então, seja. É melhor do que ter uma velha opinião formada sobre tudo. Aceite os fatos, abra sua mente. Eu sou vampiro e você é minha amada eterna. Vamos ficar juntos pra sempre.
WANDERLÉA – Se isso acontecer, será que você não vai enjoar de mim? Se o que te mantém vivo, objetivado, é a busca eterna por mim, como será sua vida depois que eu te disser que sim, que fico com você pra sempre?
RAUL TROCA OLHARES COM O COELHO.
RAUL – Boa pergunta. Agora você me pegou. Mas isso nunca aconteceu nem acontecerá, não é? Até hoje você sempre me repudiou, nunca se convenceu e isso faz parte do seu charme. Atiça o meu desejo de sempre te buscar.
WANDERLÉA – Mas vamos falar hipoteticamente. Digamos que eu diga sim agora. O que faremos? Você me morde, eu viro uma vampira, e aí? Vou ter fome de sangue. Da mesma forma que você vai atrás de mulheres, eu vou ter que ir atrás de homens. Você ia gostar de me ver mordendo outros pescoços?
RAUL – Nunca! Isso nunca! A gente encontra uma alternativa.
WANDERLÉA – Iguais aos filmes de Hollywood que você detesta?
RAUL – Sim! Igualzinho. Ou melhor, igual àquele filme lindo, sueco, que Hollywood tentou estragar, mas não conseguiu.
WANDERLÉA – Ah, sei qual é, o “Deixe Ela Entrar”.
RAUL – Exato. Eu saio, mato as pessoas e trago pra você.
WANDERLÉA – Pessoas não. Eu não vou ficar chupando pescoço nem bebendo sangue de mulher. Tem que ser pescoço de homem.
RAUL – De homem? Porra, sacangem...
WANDERLÉA – E você pensa o quê? Que vai continuar mordendo mulheres por aí? Claro que não. Se eu não posso, meu bem, você também não pode.
RAUL – E vamos viver de quê?
WANDERLÉA – Me responda você. Quem vive me buscando através dos séculos e séculos é você. Você tem que ter um plano pra nossa vida conjugal. Não é possível, que durante todos esses anos, você não tenha pensado em como viveríamos?
RAUL – Porra, mulher é foda... Não tinha pensado nisso. Você vai topar mesmo? Tem certeza?
WANDERLÉA – Tou pensando seriamente. E seria uma alternativa diferente pros meus trinta anos.
RAUL FICA PENSATIVO, PARECE INCOMODADO. ELE COCHICHA ALGO NO OUVIDO DO COELHO E DEPOIS OUVE O QUE O COELHO LHE DIZ (!).
RAUL – É... olha só, vamos fazer o seguinte... A gente se separa agora, você vive sua vida normalmente, eu penso como vamos sobreviver, daí na sua próxima encarnação eu já vou ter uma solução e a gente fica junto. Pode ser assim?
WANDERLÉA – Acho justo. E quanto ao assassinato do Caetano? Vou ficar presa e virar uma balzaquiana solteirona e assassina?
RAUL – Acho que Hollywood só produziu um filme que sempre que posso gosto de citar em momentos como esse. “E O Vento Levou...”. Você viu?
WANDERLÉA – Sim. Mas o que isso tem a ver com o meu crime?
RAUL – Com o crime, nada. Tem a ver com a gente. Não ficaremos juntos nessa sua vida. Na próxima, você não se lembrará de nada. Então, só me resta citar a fala final, quando Rett Butler olha nos olhos de Scarlet e diz: “Sinceramente, querida, eu não dou a mínima”.
ELE E O COELHO SAEM ENTRE AS BRUMAS.
WANDERLÉA – Homens!
SOBE MÚSICA DO FILME “E O VENTO LEVOU...”
CONTINUA...
FIM.
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SIM, EU DISSE NÃO
De César Amorim
MARCHA NUPCIAL. DO FUNDO DO PALCO, SAINDO DAS SOMBRAS, WANDERLÉA, VESTIDA DE NOIVA, SEGURANDO UM BUQUÊ, CAMINHA LENTAMENTE ATÉ PARAR NO PROSCÊNIO. UM FOCO DE LUZ SOBRE ELA, PARADA, ENCARANDO A PLATEIA, COM UM ENORME SORRISO NO ROSTO.
DETALHE IMPORTANTE: ELA USA UM ANEL DE LUA E ESTRELA.
WANDERLÉA – Sim. (Tempo). Era o que eu diria. Naquele dia, eu diria sim. Finalmente. Eu tracei uma meta pra mim, quando li “A Mulher de 30 Anos”, do Balzac: encontrar o homem da minha vida e me casar antes de ser chamada de balzaquiana. Só faltavam oito semanas para eu completar trinta anos e ali estava eu, prestes a atingir o meu objetivo. Eu era muito boba. Uma romântica incorrigível. E mais boba ainda por achar que o homem da minha vida era o Erasmo.
ENTRA ERASMO, PELO MESMO CAMINHO. É UM CARA BONITÃO, BEM VESTIDO, SORRIDENTE. ELE PARA DO LADO DIREITO DELA, MAS NÃO A OLHA, PERMANECE SORRINDO PARA A PLATEIA.
WANDERLÉA – Esse era o Erasmo. Era não, credo. Ele não morreu. Esse é o Erasmo. Ele era meu noivo. Ele possuía as três qualidades essenciais que buscava num homem. Primeiro, a heterossexualidade. Segundo, tinha bons dentes. E terceiro, tinha um ótimo emprego público. Auditor Fiscal do Estado. Com um salário que era umas dez vezes o meu. Sou professora de teatro da Martins Pena. De fudida, bastava eu. Resumindo, ele era um sonho. Mas, como sempre acontece, com o tempo, deixei de enxergá-lo com os olhos balzaquianos e passei a vê-lo pela ótica de Flaubert. A realidade esmurrou a minha porta. E a dúvida de que ele era o tal homem certo me atingiu com o mesmo impacto. Eu explico: ele não era nada romântico. E ainda tinha mãe. E o pior, ela estava viva! Como se isso não bastasse, ter atitude não era o forte do meu futuro marido. E foi, justamente, essa falta de atitude que abriu espaço pra atitude de outros. Naquele dia, a única pessoa com atitude naquela cerimônia foi... ele.
ENTRA ROBERTO, UM JOVEM LARGADO, MUITO TÍMIDO, USANDO UM JEANS DESBOTADO E TÊNIS VELHO. ELE FAZ O MESMO PERCURSSO QUE OS OUTROS DOIS E FICA DO LADO ESQUERDO DELA. ELE PARECE AFLITO.
WANDERLÉA – Roberto, o amigo músico e sequelado do Erasmo. Tá, tudo bem, ele não é nenhuma oitava maravilha do mundo. Na verdade, ele não é maravilha nenhuma. Mesmo que eu estivesse bêbada, drogada, numa boate esfumaçada e escura, eu jamais ficaria com ele. Mas no dia do meu casamento, na hora do sim, lá estava eu, tal e qual a Esmeralda do Victor Hugo, perplexa com o amor do Quasímodo.
ELA E ERASMO FICAM DE FRENTE UM PARA O OUTRO E DÃO-SE AS MÃOS.
SUGESTÃO: Em todas as falas do Roberto, tem trechos retirados de algumas músicas, a maioria do Rei – outras que ficaram famosas na voz da Wanderléa e do Erasmo. Assim, seria interessante que, em algumas dessas frases, fossem ouvidos também poucos acordes de violão dessas músicas, uma vinheta, só para pontuar a frase e identificar a canção. As citações que, a meu ver, podem funcionar como vinheta estão em negrito. Os nomes das músicas estão em destaque ao lado das falas.
ERASMO – Eu, Erasmo, aceito você, Wanderléa, como minha legítima esposa e prometo ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-te e respeitando-te durante todos os dias de minha vida.
ERASMO – Eu, Wanderléa, aceito você...
ROBERTO – Por favor, pare agora, padre! (Música: Pare o Casamento – cantada por Wanderléa).
WANDERLÉA – Erasmo, o que tá acontecendo?
ERASMO – Roberto, o que tá acontecendo?
ROBERTO – Eu sei que estou errado, cara, mas nem mesmo sei como isso aconteceu.
WANDERLÉA – Errado? O que é que tá errado? Você andou me traindo, Erasmo? É isso, Roberto? Esse canalha tem outra?
ROBERTO E ERASMO – Não!
ROBERTO – Não, Wanderléa. Ele não tem outra. Esse é o melhor cara que eu conheço. É o meu amigo de fé, meu irmão, camarada. (Música: Amigo).
ERASMO – Cara, então, qual é a tua? Deixa de palhaçada!
WANDERLÉA – Ele é o seu padrinho, Erasmo! Ele tá me matando de vergonha. Faça alguma...
ROBERTO – Eu estou apaixonado por você. (Música: Eu estou apaixonado por você).
WANDERLÉA E ERASMO – Por mim?
ROBERTO – Que por você o quê, Erasmo! Tá me estranhando, rapaz? (Para Wanderléa): Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer.
WANDERLÉA – Você tá falando comigo?
ROBERTO – Eu te amo, Wanderléa. Desde o primeiro dia que te vi. A beleza não é nada se for comparada com tudo que vejo em você.
ERASMO – Que merda é essa, Roberto? É o Skank, não é? Te falei, larga essa droga. Toma rumo na vida. Deixa essa parada de música de lado e vai estudar pra concurso. Para com isso. Tá todo mundo olhando pra gente.
ROBERTO – Não importa. Quero que vá tudo pro inferno. Eu prefiro falar isso agora pra sua noiva, do que falar amanhã pra sua mulher. Desculpa, cara, mas Wanderléa é a mulher da minha vida.
ERASMO – Você não pode tá falando sério.
ROBERTO – Falando sério, eu tou falando sério sim. Eu não quero ter a vida inteira pra me arrepender. Wanderléa, desculpa estar atrapalhando esse momento tão especial pra vocês dois, mas... (Música: Falando sério).
WANDERLÉA – Roberto, há quanto tempo nos conhecemos? Há mais de dois anos, meu Deus. Será que não teve um dia sequer nesse tempo todo mais adequado pra você me confessar isso? Tinha que ser justo hoje? E com plateia?
ROBERTO (muito romântico) – A coragem não bate sempre à minha porta. Hoje ela bateu e acho que quem abriu foi o desespero e o medo de nunca poder revelar esse amor. Acontece que eu... não sei viver sem você.
ERASMO – Que cafona!
WANDERLÉA (encantada) – O amor é cafona, Erasmo.
ROBERTO – Eu sei que você vai casar com ele de uma maneira ou de outra. Sei que você não sente nada por mim. Mas eu não me perdoaria se você casasse sem saber de tudo o que sinto por você. Eu... te daria o céu, meu bem. (Música: Eu te darei o céu).
ERASMO – Tu tá viajando, cara! Você já foi longe demais. Acabou! A nossa amizade acaba aqui. Ninguém quer ouvir o que você tem a dizer.
WANDERLÉA – Fale por você, querido. Agora, eu quero ouvir.
ERASMO – O quê?
WANDERLÉA – Era disso que te falava quando dizia que nossa relação precisava ser mais maluca, menos certinha. Eram atitudes assim que eu esperava de você. Sou toda ouvidos, Roberto. Vai, faz teu desabafo.
MÚSICA INCIDENTAL DE VIOLÃO DURANTE TODA A FALA DO ROBERTO A SEGUIR: DESABAFO, DE ROBERTO CARLOS.
ROBERTO – Erasmo, meu querido, meu velho, meu amigo, não me queira mal. Sei que daqui a alguns anos não serei mais do que um cara maluco que atrapalhou seu casamento e disse barbaridades pra sua mulher. Sei que Wanderléa também me verá assim. Mas esse maluco precisa dessa maluquice hoje pra não ser um louco varrido amanhã. Eu falava pra mim mesmo: preciso acabar logo com isso, preciso lembrar que eu existo. Eu existo. Eu existo. Chega de viver abafando meus sentimentos. Chega de me esconder. Eu só queria gritar pro mundo que te amo, Wanderléa. Eu te amo! Eu te amo! EU TE AMO!
FIM DA MÚSICA INCIDENTAL.
WANDERLÉA – Você... meu Deus... Ai, Roberto, isso é a coisa mais...
ERASMO – Absurda do mundo! Eu não sei onde estou com a cabeça que não te quebro a cara.
WANDERLÉA – A sua falta de atitude não vai deixar você fazer nada, fique tranqüilo. Olha, Erasmo, me desculpa, mas alguma coisa aconteceu agora. As palavras do Roberto... Foi assim, o que eu senti não sei dizer. Me dei conta que entre nós foi tudo um sonho, foi tudo ilusão... Só sei que com você, meu bem, não posso mais viver. (Música: Foi assim – cantada por Wanderléa)
ERASMO – Como assim? Alguns poucos diálogos e tudo muda? Isso é um pesadelo? Para o mundo que eu quero descer!!
TODOS CONGELAM, MENOS WANDERLÉA, QUE SE DIRIGE AO PÚBLICO.
WANDERLÉA – Me perdoem, aquela não era a hora pra citar o Raul. Ele só entraria em minha vida dali a duas semanas. Esse era outro defeito do Erasmo, antecipar um problema. Mas já que foi citado, é bom que guardem esse nome: Raul. Uma deliciosa metamorfose ambulante que sairá da minha vida da mesma forma que entrará. Bom, voltemos ao passado.
TODOS DESCONGELAM.
WANDERLÉA - Você é um menino bonito, Roberto, nunca havia reparado. Seu olhar é simplesmente lindo. E eu... eu me sinto... enfeitiçada. (Música: Menino Bonito – cantada por Wanderléa).
ERASMO – Que porra é essa? Ele é o bom? É isso? E eu sou o quê? Eu sou terrível? É bom falar. Wanderléa, não faz isso. Não dê ouvidos à maldade alheia. Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo.
WANDERLÉA – Bela tentativa, Erasmo. Mas dizer que me ama e me chamar de estúpida na mesma frase, não é legal. (Para a plateia): Eu peço desculpas a todos, mas não haverá mais casamento.
ERASMO – Meu amor, você está tomando uma decisão importante sem pensar. Conte ao menos até três, se precisar conte outra vez. Mas pense outra vez.
WANDERLÉA – Eu já pensei, Erasmo. Eu não vou me casar com você. E você tinha razão, Roberto. Não vou ficar com você tampouco. Desculpa, mas não gosto dos teus dentes. E música não dá futuro a ninguém. Imagina, eu, atriz, e você, músico. Acabaríamos fazendo performance na Carioca. Erasmo, meu bem, o que Roberto fez me levou a perceber que não é você quem eu quero. E, apesar da sua linda declaração de amor, Roberto, você também não é o homem certo pra mim. Não sei quem é ainda, mas agora eu já sei exatamente quem não é. A única coisa que eu sei é que o meu prazo está se acabando. Tenho exatas oito semanas pra encontrar o homem da minha vida antes de virar uma balzaquiana. E eu terei que correr, se quiser cumprir minha promessa.
OS DOIS HOMENS CONGELAM, ELA FALA PARA A PLATEIA.
WANDERLÉA – Eu disse no começo que eu era uma romântica incorrigível, não disse? Eu menti. Eu ainda sou. Sei que fui contraditória não correndo pros braços do Roberto. Seria um lindo final. A atriz e o músico felizes para sempre. Eu sou romântica, mas não sou maluca. Depois do Balzac e do Flaubert, Zola entrou com tudo na minha vida. Eu sentia que ia encontrar o homem certo de uma maneira muito natural. E foi assim, naturalmente, que conheci o Caetano. Tudo graças, imaginem, a esse meu anel de lua e estrela.
WANDERLÉA JOGA O BUQUÊ PARA A PLATEIA E SAI CORRENDO.
ERASMO DÁ UM SOCO EM ROBERTO, QUE CAI NO CHÃO.
BLACK OUT.
CONTINUA...
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O QUE DIZER?
(Inspirado na música “Por que a gente é assim?”)
De César Amorim.
SOM DE BOATE. WANDERLÉA TENTA FALAR COM ZUZA, UM GAY MUITO CHAPADO, QUE DANÇA LOUCAMENTE. ELE BEBE UÍSQUE; ELA, COCA-COLA.
Importante: os trechos de fala retirados das músicas não precisam ser cantados, melhor que sejam ditos como falas.
WANDERLÉA – Vem cá, Zuza! Por favor, me diz. Você pode me ajudar?
ZUZA – Mulher, deixa ver se entendi tua história. Você ia casar, mas o melhor amigo do teu namorado se declarou pra você na hora do casamento e você não casou. Sua cachorra morreu... ai, meus pêsames, eu a-m-a-v-a a Sarah Jéssica... Então, a coitadinha morreu e, na hora do enterro dela, um homem aparece do nada e diz que te ama loucamente. Você, muito prudentemente, mata ele.
WANDERLÉA – Ele me atacou. Legítima defesa!
ZUZA – Não me interrompa, se não vou ter que começar tudo de novo, que nem os meninos de Olinda. Então, voltando, você matou o seu admirador e a única testemunha do assassinato foi o homem que te vendeu as flores pro enterro da Sarah Jéssica. Tá tudo certo até aqui?
WANDERLÉA – Certíssimo.
ZUZA – E, claro, como nada na sua vida é simples, esse florista era um vampiro, que nasceu há dez mil anos atrás, e que também te perseguia porque você é a amada eterna dele. Ou seja, você tá exalando sexo.
WANDERLÉA – Você acredita em mim, não acredita?
ZUZA – Minha linda, vou te falar com pureza d’alma. Nesse exato momento, eu tou igual a Amy Winehouse minutos antes do passamento, ou seja, com alucinógenos até a alma. E, ainda assim, é difícil acreditar nessa tua história. Depois eu é que sou exagerado, né?
WANDERLÉA – Mas é a pura verdade, amigo. Me dá uma luz. O que é que eu faço?
ZUZA – Wandeca, minha rainha fofa, só tenho um conselho pra te dar: se joga. Aproveita essa vibe, tá entendendo? Tua vida sempre foi um saco, certinha pra caralho, toda regradinha. Tu nunca fumou umzinho, que eu tou sabendo, nunca nem bebeu álcool, então dá uma guinada, mulher.
WANDERLÉA – Do que é que você tá falando, Zuza? Eu matei um homem!
ZUZA – Cara, isso é demais! A tua vida girou 360 graus.
WANDERLÉA – 180.
ZUZA – Ai, que saco, você sempre limitada. O que é que custa girar 360? Não se limita. Agora é o momento de você aproveitar essa onda e cair pra dentro, sacou? Cair matando.
WANDERLÉA – Que cair matando o quê! Eu tou fudida, Zuza!
ZUZA – E isso é lindo! Cara, pensa, tu vai mudar. Não, tu já tá mudada. Tá com uma cara de maluca que é uma delícia de se ver. Se eu não te conhecesse bem ia te perguntar quem é o teu fornecedor. Isso que tá acontecendo contigo é o universo te dizendo pra partir pra outra, pra mudar a rota, pra deixar de caretisse e se entregar.
WANDERLÉA – Me entregar? Ai, não, eu não quero ser presa.
ZUZA – Porra, não é pra se entregar pra polícia, caralho. Se entrega a essa sensação nova. A essa adrenalina, a essa incerteza do amanhã. Vive o agora, tá me entendendo? E vai fugindo até te pegarem. Corre pelo mundo, voa, mergulha, faz alguma coisa de radical. Pensa assim, que tu tem uma doença terminal e que tem que aproveitar cada minuto de vida que te resta. Tou até arrepiado, gente. Vai ser lindo demais. Vai te dar um barato que tu não tem noção.
WANDERLÉA – Eu não tenho estrutura, Zuza.
ZUZA – Tem estrutura sim! Que papo é esse? Pensa comigo: tu já é uma assassina mesmo. Já fudeu com a vida de um coitado maluco que te amava. Já deixou o otário do Erasmo no altar. Se depois de tudo isso não tiver estrutura, trata de ter. Aproveita essa novidade na tua vida e muda ela. Tu já vai fazer 30 anos, mulher. Tá na hora de dar uma pirada.
WANDERLÉA – Não, tá na hora de me casar.
ZUZA – Deixa de ser chata, porra! Casar é o caralho, caceta! Que mania é essa de casar? E, quer saber, acho muito difícil. Nem sei como a anta do Erasmo te quis.
WANDERLÉA – O quê?
ZUZA – Amiga, você precisa ser forte. Eu preciso te dizer umas verdades. Vai doer? Ah, vai, mas pensa que faz parte do teu processo evolutivo. Seguinte: ninguém te gosta, Wandeca. Você só atrai gente maluca. E, perdão, amiga, mas, tirando teus admiradores esquisitos, todo mundo fala barbaridades de você.
WANDERLÉA – Todo mundo? Quem é todo mundo?
ZUZA – Pessoas que te conheceram e que te acharam o supra sumo da chatisse na terra.
WANDERLÉA – Gente, mas eu sempre sou tão fofa com todo mundo... e gosto tanto de tanta gente...
ZUZA – Mas tu fala demais, mulher. E é muito monotemática. Só fala em casamento, no homem perfeito, em casar antes dos 30... Ou seja, você é um porre! Se tu saísse do teu corpo um pouquinho, se perdesse o controle um tantinho que fosse, e se observasse de fora, tu ia ter uma noção do real significado da palavra “insuportável”.
WANDERLÉA – Nossa... eu tou tendo agora o real significado da palavra “depressão”. Zuza, eu tenho amigos e eles gostam de mim.
ZUZA – Amigos virtuais! E, pelo que você me contou, a maioria deles nem existem de verdade, foram fabricados pelo psicopata que você matou.
WANDERLÉA – Mas eu tenho você...
ZUZA – Sim, meu amor, você me tem. Mas sabe por quê? Por que eu te conheço desde criança. E te amo verdadeiramente. E vou te ser sincero, se te conhecesse hoje, ia pensar duas vezes se me aproximava de você.
WANDERLÉA – O que é que você tá bebendo aí? O soro da verdade?
ZUZA – Não, o soro da amizade. Ui, ficou piegas isso. Mas é isso mesmo. E olha pra você. Quase trinta anos e tomando coca-cola! Tu nunca tomou um porre na vida, mulher. E ainda é atriz. Como assim? E ainda dá aulas de teatro. Como assim? Fico imaginando que tipo de atores você tá produzindo. Ator certinho, meu bem, só o Tony Ramos. Essa vida é louca, é breve, deixa que ela te leve. Perde o controle e curte um pouco.
WANDERLÉA PENSA UM POUCO, DEPOIS ARRANCA O COPO DE UÍSQUE DAS MÃOS DE ZUZA E BEBE TUDO DE UMA VEZ.
WANDERLÉA – Tá olhando o quê?
ZUZA – Mais uma dose?
WANDERLÉA – É claro que eu tou a fim.
SOBE A MÚSICA. ZUZA PEGA UMA GARRAFA DE UÍSQUE E ELES COMEÇAM A BEBER E A DANÇAR MUITO. PASSAGEM DE TEMPO.
ZUZA – Aí eu falei no palanque da passeata gay: Brasil, mostra a tua cara!
SOBE MÚSICA. PASSAGEM DE TEMPO. ESTÃO MAIS BÊBADOS.
ZUZA – Eu queria ouvir de um homem assim: Você é o amor da minha vida. Daqui até a eternidade.
WANDERLÉA – Eu ouvi.
ZUZA – De vampiro não vale.
SOBE MÚSICA. PASSAGEM DE TEMPO. MAIS BÊBADOS AINDA.
ZUZA – Sabe o que você tem que fazer, Wandeca? Declarar guerra a quem finge te amar.
WANDERLÉA – Eu já comecei. Já matei um.
ZUZA – Ai, como você tá bandida!
ELES GARGALHAM. PASSAGEM DE TEMPO. MUITO MAIS BÊBADOS.
ENTRA RITA, UMA MULHER COM CABELO VERMELHO, MUITO CHAPADA TAMBÉM, QUE NÃO FALA COISA COM COISA.
ZUZA – Olha a Rita ali! Rita!! O que é que você tá fazendo aqui?
RITA – Eu arrombei a festa, meu bem. (Para Wanderléa): Chega mais. Chega mais.
WANDERLÉA SE APROXIMA.
RITA – Tu soube que suspenderam os jardins da babilônia?
WANDERLÉA – Oi?
RITA – Quem pode, pode. Deixa os acomodados que se incomodem.
ZUZA – Cara, tu tá muito linda. Maior luz.
RITA – Baila comigo?
WANDERLÉA – Eu?
ZUZA – Vai, boba. Se joga.
RITA – Eu conheço essa cara, esse jeito, essa cara de louca... Gata borralheira, você é princesa...
WANDERLÉA – E a princesa aqui procura um príncipe, não outra princesa, tá? Dá licença.
RITA – O sexo frágil não foge à luta.
WANDERLÉA – Zuza, sossega essa mulher.
RITA – Vem cá, meu bem, me descola um carinho. Eu só sossego com beijinho.
WANDERLÉA – Zuza! Ela tá me cantando!
ZUZA – A Rita é assim, vai morrer cantando.
RITA – Ok, já entendi. Desculpe o auê. Eu não queria magoar você.
RITA SAI.
WANDERLÉA – Ela tá muito...
ZUZA – Feliz. Essa é a vida que eu quis. Era tudo o que eu queria.
WANDERLÉA – E eu queria tanta coisa. Queria que essa noite nunca tivesse fim. Ai, Zuza, não tou legal. Por favor, fica comigo e não desgruda de mim. E me diz... por que é que a gente é assim?
SOBE UMA MÚSICA BEM DANÇANTE. ELES SE ABRAÇAM E DANÇAM COLADOS, COMO SE FOSSE UMA MÚSICA LENTA.
FIM.
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CÉSAR AMORIM
Manchete : 50 Dias entre o céu e o mar – Adolescentes sobrevivem à deriva
Jornal O Globo – 26 de novembro

A ODISSEIA
De César Amorim.
DOIS ADOLESCENTES, DENTRO DE UM BARCO, EM ALTO MAR. ESTÃO EXAUSTOS, SEDENTOS E FAMINTOS. ULISSES É O MAIS FORTE, COM JEITO DE BRUCUTU, ENQUANTO AQUILES É UM EMO, UM POUCO AFEMINADO. ULISSES PREPARA UMA ISCA E JOGA NO MAR, COM A VARA DE PESCAR.
ULISSES – Me empresta teu protetor solar?
AQUILES – Ah, não, por que você não trouxe o seu? Eu te falei, “leva teu protetor e hidratante”, mas você falou que homem não usa essas coisas...
ULISSES – E não usa mesmo.
AQUILES – Quanta ignorância. Então, se conforma com tua pele uó.
ULISSES – Não sei por que embarquei nessa de vir pescar contigo... Olha a merda que deu.
AQUILES – Sabe por quê? Porque você tava com medo que eu te denunciasse por bullying, Ulisses querido. Você e aqueles seus amiginhos trogloditas, o Fernando, o Roberto e o Alejandro.
ULISSES – Nada a ver. Sou diferente dos meus amigos, tá ligado? Não tenho preconceito com gay.
AQUILES – E quem disse que sou gay?
ULISSES – E precisa dizer? Tu é o maior viadinho...
AQUILES – O que parece pode não ser e o que não parece pode ser, meu bem. Eu ia até te emprestar meus hidratantes, mas não vou mais. Morra seco e esturricado.
ULISSES – Não brinca com isso. Já estamos aqui há um tempão. Não tenho nem noção de quanto tempo faz. E ninguém sabe que a gente tá aqui. Eu não falei nada lá em casa...
AQUILES – Nem eu na minha... Ai, meu Deus, tou com medo, sabia? Meu último pote de protetor acaba hoje e eu vou ficar mega queimado. Eu não posso. Não combina, entendeu? Vou estar fora da tendência. Ai, gente... eu não merecia isso...
AQUILES COMEÇA A CHORAR.
ULISSES – Porra, chorando de novo! Para com isso, Aquiles. Nada a ver, nada a ver. Depois tu reclama que geral te chame de gay.
AQUILES – Insensíveis! Todos vocês! Chorar, assumir um sentimento, não mascarar uma emoção é muito masculino, tá? Eu sou o homem do novo milênio. Pessoas como você estão “out of fashion”! Ai, meu Deus, e eu tou morrendo de fome.
ULISSES – Eu pego mais peixe. É o que não falta aqui.
AQUILES – Não quero peixe! Não suporto mais sashimi. Eu prefiro morrer.
ULISSES – Vem cá, posso te perguntar uma parada? Mas responde na moral, falou?
AQUILES – Depende da pergunta. Manda aí.
ULISSES – Tu já pegou alguma mina?
AQUILES – Muito íntima essa pergunta. Não sou obrigado a responder.
ULISSES – Tá bem, não é mesmo. Mas a gente pode nunca mais voltar, pode morrer aqui... É uma chance pra gente se conhecer mais. Tou tentando conversar contigo desde que a gente se perdeu e você só tem me dado patada.
AQUILES – É o meu mecanismo de defesa. Tem razão. Tenho sido meio grosso mesmo. Mas você queria o quê?
ULISSES – Por que você me convidou pra esse passeio no barco do teu pai?
AQUILES – Não te convidei. Você se convidou. E justamente depois que soube que eu ia denunciar você e seus amiguinhos na polícia. Maior coincidência, né? Depois de fazer a merda, vem tentar se aproximar da vítima.
ULISSES – Nada a ver. Eu não tava metido nessa parada aí contra você não. Tudo bem, tava junto, mas não participei.
AQUILES – Cúmplice. Se calou, foi cúmplice.
ULISSES – Tá, tudo bem, cúmplice pode ser. Mas não pedi pra passear de barco contigo. Eu falei que tinha vontade de pescar em alto mar um dia e você disse que teu pai tinha um barco e eu perguntei se você podia me emprestar pra eu ir com minha gata e você disse que não, que não ia emprestar o barco do seu pai pra eu ficar com minhas vagabundas, aí eu disse que ela não era vagabunda, que a Penélope é uma moça de família, aí você disse que pra ficar comigo tinha que ser vagabunda, que uma mulher direita não ficaria com um homem das cavernas como eu e...
AQUILES – E você disse que não era um homem das cavernas e que ia me provar. Daí você se convidou.
ULISSES – É... mais ou menos isso...
SILÊNCIO. BARULHO DE ONDAS, DE GAIVOTAS.
AQUILES – E até agora você não provou nada. Continua sendo um troglodita pra mim.
ULISSES – Olha, vou te mostrar uma parada, mas tu tem que ficar de bico calado, tá ligado? Vê bem se um troglodita curte esse som aqui? Saca só.
ELE PEGA O MP3 E COLOCA O FONE NO SEU OUVIDO E NO OUVIDO DE AQUILES.
AQUILES – Ai, sai pra lá. Deus me livre ouvir esse rock pesado que vocês adoram!
ULISSES – Nada disso. Ouve, porra.
ULISSES COLOCA O FONE NO OUVIDO DE AQUILES. COMEÇA A TOCAR UMA MÚSICA DO GRUPO FRESNO: “DEIXA O TEMPO”.
AQUILES – Fresno?
OS DOIS – Adoro!
AQUILES – Não acredito que você...
ULISSES – Ouve a letra!
ELES ESCUTAM A MÚSICA. DURANTE OS VERSOS ABAIXO, AQUILES FICA CHOCADO COM A MÚSICA. ULISSES TÁ COM OS OLHOS FECHADOS CURTINDO. AQUILES FICA OLHANDO PRA ELE, SORRI, DEPOIS FECHA OS OLHOS. ULISSES ABRE OS OLHOS E OLHA PRA AQUILES, DE OLHOS FECHADOS, CANTANDO A MÚSICA.
MÚSICA:
Eu não volto mais pra casa
Não há ninguém a me esperar
Eu não vou ver o sol nascer
Pois tranquei minhas janelas
Pra não deixar a luz entrar
Eu canto as notas mais erradas
De refrões que eu nem sei tocar
Tentei chegar até você
Mas você não ouviu nada
Chegou a hora de acordar...

AQUILES ABRE OS OLHOS E PERCEBE ULISSES OLHANDO PRA ELE. ULISSES FICA COM VERGONHA E FECHA OS OLHOS. AQUILES SORRI E CONTINUA OLHANDO PRA ELE. ULISSES ABRE OS OLHOS DEVAGAR E ELES SE ENCARAM.

Então deixa que o tempo vai cicatrizar
Ele te trouxe até aqui, mas pode te fazer mudar
Então deixa que o tempo vai
Gravar a tua voz em mim
Para que eu possa te ouvir toda vez que eu precisar
Queria tanto estar em casa
(O teu silêncio não traz paz)
Vendo mentiras na televisão

A MÚSICA ABAIXA AQUI. ULISSES COMEÇA A SE APROXIMAR DE AQUILES, TENTANDO BEIJÁ-LO. AQUILES, BEM ASSUSTADO, RECUA SEMPRE. SEM TER PARA ONDE ESCAPAR, AQUILES TIRA O FONE DO OUVIDO. PERCEBENDO QUE NÃO TEM MAIS O QUE FAZER, AQUILES SE ENTREGA E ELES QUASE SE BEIJAM, ATÉ SEREM INTERROMPIDOS POR UMA SEREIA,UMA LADY GAGA DO MAR(???).

SEREIA – Que lindos!! Mais dois para o meu séquito de seguidores! Sejam bem-vindos, meus amores.

OS DOIS – O que é isso??

SEREIA – Ora, meus queridos, uma mulher em alto mar, andando sobre as águas, linda como eu, com esse rabão enorme de peixe... o que seria?

AQUILES – Uma sereia!

ULISSES – Uma alucinação!

SEREIA – Ponto para você, Aquiles. Vocês me pescaram. Eu sou Sereia Gaga, a seu dispor. Vim para ajudá-los a se encontrar.

ULISSES – Sereia Gaga? Que porra é essa?

AQUILES – Gaga? De Lady Gaga?

SEREIA – Somos primas. O sobrenome Gaga é muito comum aqui no Atlântico. Significa “aquela que muda, que se metamorfoseia”. Ela também é um ser do mar. Aquelas roupas que ela usa, podem parecer estranhas pra vocês, mas não pra nós. Aqui é a última moda.

AQUILES – Sensacional!

ULISSES – Não olha pra ela, Aquiles. Sereias são perigosas. Ela vai te enfeitiçar.

SEREIA – Ai, obrigada, Ulisses, por estragar a minha surpresa. Muito sem graça você.

AQUILES – Eu amo sua prima. Amo!!

SEREIA – Eu sei. E você também, não é, Ulisses?

ULISSES – Lady Gaga? Tou fora, dona. Comigo você não tem poder algum, tá ligada? E não vou deixar você enfeitiçar meu amigo.

SEREIA – Amigo? Sei.

ULISSES – O que você quer conosco?

SEREIA – Fazer um convite irrecusável. Quero vocês dois como meus mais novos bailarinos. O que acham?

AQUILES – O quê? Não! Não acredito! Você quer que eu seja seu bailarino? Eu sei todas das coreografias da sua prima!

SEREIA – E o meu repertório é idêntico ao dela. Temos mais duas Gagas ainda no Pacífico e no Ártico. É um franshising. Todas cópias, todas iguais. Não é maravilhoso?

ULISSES – Não escute ela, Aquiles! Ela está nos enganando. Ela quer nos matar!

AQUILES – Eu deixo. Pra ser bailarino da Sereia Gaga eu faço qualquer coisa. Amo!!

SEREIA – E você, Ulisses? Não vem por bem? Então, vou ter que ser mais enérgica.

ULISSES – Tape os ouvidos, Aquiles, ela vai cantar!!

SEREIA GAGA DUBLA A INTRODUÇÃO DA MÚSICA “ALEJANDRO”, DA LADY GAGA.

SEREIA GAGA - I know that we are young, And I know that you may love me,
But I just can't be with you like this anymore... Alejandro.

OS DOIS GRITAM, ALUCINADOS E COMPLETAMENTE ENTREGUES AO FASCÍNIO DA SEREIA GAGA.

SEREIA – Venham comigo! Andem sobre as águas, meus amores! Fiquem felizes. Sejam alegres. Be gay!!

OS GAROTOS SAEM DO BARCO E, JUNTOS COM A SEREIA, COMEÇAM A FAZER A COREOGRAFIA DO REFRÃO DE “ALEJANDRO”.

Don't call my name
Don't call my name
Alejandro
I'm not your babe
I'm not your babe
Fernando
Don't wanna kiss
Don't wanna touch
Just smoke my cigarette and run
Don't call my name
Don't call my name
Roberto
Alejandro
Alejandro
Ale-Alejandro
Ale-Alejand-ro
Alejandro
Alejandro
Ale-Alejandro
Ale-Alejand-ro
Alejandro

O REFRÃO SE REPETE E, EM MEIO À COREOGRAFIA, ENTRA UMA VOZ OFF, MAS TODOS CONTINUAM DANÇANDO.

VOZ OFF – E uma última notícia. Depois de 50 dias em alto mar, dois garotos foram encontrados com vida. Devido ao trauma, eles não falavam coisa com coisa, só repetiam, exaustivamente, que foram salvos por Lady Gaga. Boa noite.

FIM.
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MUSA - Atriz diz que Hollywood não perdoa as feias
FOLHA ONLINE – 12 DE NOVEMBRO

HOLLYWOOD NÃO EXISTE!
De César Amorim

UMA MULHER LINDA, A ATRIZ, ENTRA NUMA RECEPÇÃO. A ATENDENTE ESTÁ AO TELEFONE. O IDEAL SERIA SE A ATRIZ NÃO FIZESSE MUITAS EXPRESSÕES FACIAIS, QUE COLOCASSE TODO O SENTIMENTO NA VOZ. ELA ESTÁ MUITO BOTOXADA, COM OS MÚSCULOS DA FACE PARALISADOS.
ATRIZ – Com licença...
ATENDENTE – Só um minuto, linda. Muito linda você. (Para o telefone): Alô? Pode falar, linda. Desculpe, é que chegou outra linda... Quer marcar pra quando? Olha, a gente só vai ter para... deixa ver... ih... só encaixe, pode ser? Só no segundo semestre de 2012. Ah, qualquer dia, não sei te falar... Começa a vir aqui a partir do dia primeiro de agosto e vai ficando... Assim que rolar uma vaga, a gente te encaixa. Tá ótimo, querida. Beijos.
ELA DESLIGA E FALA COM A ATRIZ.
ATRIZ – Ele está aí?
ATENDENTE – Depende. Quem é você, linda?
ATRIZ – Eu sou...
ATENDENTE – Ah, lembrei! Eu sei quem é você. Você é a Silvia Stevens Sommers, a atriz. Gente, você tá demais, sabia? Não te reconheci assim tão linda. Já ri muito com você.
TOCA O INTERFONE.
ATENDENTE – Só um minuto. (Para o telefone). Sim, doutor. Pois não. Sim, senhor. (Desliga). Sra. Nicole Kidman! Por favor, pode entrar. (Para a Atriz). Adorava quando você fazia aquela mulher macaca... Gente, de onde você tirava aquelas caras? Faz aí pra eu ver de novo, vai.
ATRIZ – Eu não consigo! Não consigo mais! É por isso que estou aqui. Por favor, eu preciso falar com ele agora!
ATENDENTE – Impossível, minha linda. Por mais que você seja hilária, eu não posso fazer nada. A agenda dele...
ATRIZ – Está lotada. Abarrotada. E daí? Caguei pra agenda dele. Ca-guei! Tudo que eu quero é ser ouvida por ele. É ser vista por ele. Olhe pra mim. O que você vê?
ATENDENTE – Uma mulher linda, perfeita, absoluta...
ATRIZ – Exatamente.
ATENDENTE – Então, qual é o problema?
ATRIZ – Você acabou de falar todo o meu problema, meu bem. Eu estou linda, perfeita, absoluta.
ATENDENTE – Que maravilha! Que bom pra você.
ATRIZ – Maravilha coisa nenhuma. Maravilha nada. Maravilha é o caralho! Eu não quero ser linda, perfeita, absoluta. Eu quero ser eu! Eu não sei mais quem sou eu. Eu me perdi em meio a tanta beleza. Eu me quero de volta! Por favor, me deixa falar com ele agora!
ATENDENTE – Mas, meu amor, você, com todo o respeito, era um horror! Um atropelamento, um acidente ferroviário, uma desgraça completa. Você era a filha do satanás com a mula sem cabeça de tão feia. E agora...
ATRIZ – Mas eu era feliz! Eu trabalhava! Eu era diferente! A minha feiúra era o meu ganha-pão. E agora? Tou igual a todas as outras. Quem vai contratar um clone da Angelina Jolie se já tem a verdadeira? Eu não queria isso, não queria. Só vim aqui pra tirar uma verruga que apareceu na ponta do meu nariz e saí assim. Eu vou abrir um processo contra esse homem! Quem ele pensa que é?
ATENDENTE – Querida, ele é apenas o Dr. Hollywood. E todos sabem que ele não perdoa as feias. E não perdoou você. Ele é implacável! Aqui é assim. Você entra feia, triste, sai linda e feliz.
ATRIZ – Ele é responsável pela minha infelicidade! Ele destruiu minha vida. Nunca mais fiz um filme de terror. Fiz teste para uma porrada de filme de zumbi e nada. Dizem que eu não tenho mais o perfil. Como assim? Eu tinha o perfil! E ainda era ótima pra produção. Eles não gastavam nada de maquiagem. E agora? Nem comercial eu faço mais. Era sempre o ANTES.
ATENDENTE – Agora você é o DEPOIS. Muito melhor.
ATRIZ – Melhor pra quem? Melhor pra quem faz o DEPOIS, porque você não tem noção da concorrência. Quando se é linda, não basta ser linda, tem que ser muito linda. A mais linda. Nesses testes só tem DEPOIS, não tem ANTES. Ninguém quer ser o ANTES, querida. Quem vai se expor? Era aí que eu ganhava de todas! Ser linda é injusto comigo. Eu era uma feia mega bem resolvida. E sempre era escolhida. Sempre. Era alvo de chacota, mas tinha dinheiro. Passei anos na análise para me assumir como feia e quando me assumo e conquisto meu espaço, vem esse doutorzinho Hollywood aí e me deixa deslumbrante! Eu odeio ele! Odeio!
ATENDENTE – Mas você ainda pode ser engraçada. Tem várias atrizes que fazem graça mesmo sendo lindas.
ATRIZ – Eu não posso mais mexer a minha testa! Olha pra isso! Eu estou fazendo uma força tremenda e nada. Ele destruiu minhas expressões faciais com tanto botox! Tem mais botox aqui na minha testa do que na bunda desse Dr. Ray.
A ATRIZ COMEÇA A GEMER.
ATENDENTE – Ai, meu Deus! Você tá bem, linda? Tá sentindo alguma coisa? Por que tá gemendo?
ATRIZ – Eu não tou gemendo! Eu tou chorando! Mas eu não consigo mais dar a ordem para o meu rosto se contrair. Ele não se contrai! Eu não posso mais chorar!!
ATENDENTE – Pega esse lencinho... Gente, como o ser humano é estranho... Nunca tá satisfeito.
A ATRIZ TIRA UM REVÓLVER DA BOLSA.
ATRIZ – Eu quero falar com o Dr. Hollywood agora, mocinha. E não vou aceitar um não como resposta.
ATENDENTE – É, você tem razão. Você não tá mais engraçada. Abaixa isso, tá?
ATRIZ – Então, me deixa falar...
ATENDENTE – (caindo no choro) Eu não posso!! Eu não posso!! Por favor, não me mate. Eu tenho dois filhos! Você não pode falar com ele.
ATRIZ – Eu posso sim! (Mostra a arma). E aqui está a minha senha.
ATENDENTE – Acredite em mim, você não pode.
ATRIZ – Me dê uma boa razão.
ATENDENTE – Você não pode por que... por que o Dr. Hollywood não existe!
ATRIZ – O quê? Não seja ridícula! Ele me examinou, me operou, eu falei com ele.
ATENDENTE – Não, querida. Não sei como lhe dizer isso, mas você não falou com ele. Você falou com a imagem dele na televisão.
ATRIZ – Claro, ele estava fazendo uma vídeo consulta... Você mesma me disse que ele fazia isso sempre, que viajava muito, que estava gravando sempre o programa...
ATENDENTE – Eu menti! Menti! Eu não trabalho para ele! Eu trabalho para a empresa que criou ele. Uma organização poderosíssima, uma multinacional dos cosméticos. Eles precisavam criar um médico perfeito para vender os produtos da empresa. Um médico lindo, bem humorado, casado com uma mulher linda, pais de filhos lindos, que morasse numa casa linda... e que ainda fosse campeão de artes marciais. E que apesar de todo o estresse diário ainda transasse com a mulher. Em suma, o homem perfeito. E cá pra nós, sabemos que isso não existe. Ele nunca atendeu uma só paciente.
ATRIZ – Mas ele atende às pacientes dele no programa...
ATENDENTE – Não atende. Aquelas mulheres contracenam com o espaço vazio. A imagem do Dr. Ray é colocada depois, por computador. Ele é um programa de computador, querida. Dr. Hollywood é uma farsa! E aquelas mulheres operadas por ele são muito bem pagas para não revelarem nada. Você nunca percebeu? O que é aquele cabelo dele? Aquilo não existe!
ATRIZ – Então, quem opera elas? Quem me operou?
ATENDENTE – Eu.
ATRIZ – Você?
ATENDENTE – Eu sou a verdadeira cirurgiã. Antes de vocês entrarem para falar com ele, já respondem a um questionário, lembra? Nele tem tudo o que preciso saber. Enfim, é isso. Desculpe pela sua mudança. Mas sempre fui sua fã e achava que você seria mais feliz se fosse bonita.
ATRIZ – Meu Deus... Você tem talento! Por que não assume que é você e começa a operar abertamente?
ATENDENTE – Porque eles mantêm meus filhos reféns. Aquelas crianças do programa dele, os filhos dele, são meus filhos!! Eu estou presa a essa organização para sempre. E, desculpe dizer, você também.
ATRIZ – Eu?
ATENDENTE – Claro. Ou você acha que vai conseguir sair daqui assim, depois de saber de tudo?
ATRIZ – Você não pode...
ATENDENTE – Posso sim. Me perdoe, mas é a vida dos meus filhos. No final das contas, tudo acabou bem. Eles finalmente me liberaram para passar um período com minhas crianças. Estarei na próxima temporada do programa como a babá dos meus próprios filhos. E preciso de alguém no meu lugar aqui. E você é perfeita. Vende bem a imagem da organização. Parabéns, você começa hoje. Bem-vinda a Hollywood!
FIM.
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Manchete: MÁQUINA DE GRAVAR SONHOS É POSSÍVEL, diz cientista.
SITE G1 – 30 de outubro.
A MÁQUINA DE GRAVAR SONHOS
De César Amorim.
UM CASAL TOMA CAFÉ DA MANHÃ. ELE É UM CIENTISTA, COM CARA DE MALUCO, ELA, UMA SIMPLES DONA DE CASA. EM CIMA DA MESA, ALÉM DO CAFÉ, LIVROS E MAIS LIVROS. ELE BEBE O CAFÉ E LÊ DURANTE TODO O TEMPO, NUNCA OLHA DIRETAMENTE PARA A MULHER.
ELA – Tive uma noite maravilhosa. E você, querido?
ELE – Interessante.
ELA – Eu tive sonhos divinos.
ELE – Que bom.
ELA – E você?
ELE – Os de sempre.
ELA – Nossa... Você sonha todos os dias com a mesma coisa? Que chato.
ELE – Mas não é chato. São sonhos maravilhosos.
ELA – Eu li em algum lugar que os sonhos são os nossos desejos mais secretos. Que a gente sonha com o que a gente deseja muito...
ELE – Eu não sonho nada disso. Sonho com a minha realidade.
ELA – Que bom... então eu estou incluída nesse sonho... afinal, faço parte da sua realidade... E se são maravilhosos, você também me acha maravilhosa, não é assim?
ELE – É sim. É sim. Agora, me deixa trabalhar.
TEMPO.
ELA – Maravilhosa como quem? Dá um exemplo.
ELE – Ah... maravilhosa como... ah, sei lá... como a minha mãe, pronto.
ELA – E sua mãe é maravilhosa?
ELE – Pra mim é.
ELA (para si) – Mãe... É... A tirar pela nossa cama... Ser sua mãe tem toda a lógica...
TEMPO.
ELA – Como está indo com essa máquina que grava os sonhos, meu bem? Alguma novidade? Ela funciona?
ELE – Ainda é muito cedo para dizer isso. Tenho tido progressos. Se a minha teoria estiver certa e esse equipamento que desenvolvi funcionar, como acho que vai, terei feito a descoberta do século. Quiçá do milênio. Essa máquina pode trazer benefícios incalculáveis à humanidade. Seremos capazes de ouvir o que pessoas em coma pensam, por exemplo... Será uma revolução. Preciso de algumas cobaias humanas. É a parte mais delicada.
ELA – Eu posso ser sua cobaia.
ELE – Não, não é uma boa ideia. Seria interessante alguém com quem a gente não tem muito contato. Para não sermos sugestionados.
ELA – Já sei. Minha prima Ludmila! Ela vem aqui hoje.
ELE ERGUE OS OLHOS E OLHA, PELA PRIMEIRA VEZ, PARA ELA.
ELE – Ludmila? O que ela...?
ELA – Vem me visitar. Disse que precisava me contar uma fofoca quentíssima. A Lu está de caso com um homem casado!
ELE – Ca... Ca... casado? Ela disse isso?
ELA – Sim. E disse mais. Que nós conhecemos ele.
ELE DERRAMA CAFÉ SOBRE ELE MESMO.
ELA – Oh, meu bem, se queimou?
ELE – Não foi nada.
ELA – A prima nunca vem aqui, não nos vemos há mais de um ano, e resolveu vir justo hoje. É perfeito. Ela não vai se incomodar que a gente veja os sonhos dela. Ela te admira muito. Vai ficar envaidecida, tenho certeza.
ELE – Não posso fazer isso com Ludmila. Ela não vai querer que a gente descubra quem é o amante dela.
ELA – Ela vai querer sim. Ela disse que ia me contar. E ela sabe muito bem que tudo o que eu sei, eu conto a você. Está decidido, Ludmila será nossa cobaia...
ELE – A que horas ela ficou de chegar?
ELA – Daqui a pouco. Deve estar estourando por aí. Estou curiosa para saber quem é esse homem casado...
ELE (nervoso) – Tenho que sair. Não vou poder ficar para falar com a Ludmila. Acabei de lembrar que tenho que levar a máquina para o laboratório da universidade e...
ELE CAMBALEIA.
ELE – Nossa... que tontura...
ELA – Tontura? São essas noites mal dormidas. Com esses sonhos maravilhosos que se repetem. Você precisa variar um pouco de sonhos. Quem sabe não ficasse melhor... Quem sabe nosso casamento ficasse melhor...
ELE – Meus sonhos não têm nada a ver com nosso casamento...
ELE CAMBALEIA MAIS UMA VEZ E SE SENTA.
ELA – Eu sei. Justamente por isso nosso casamento tá a merda que tá, não é, meu bem? Você devia sonhar mais com ele, sonhar mais comigo, talvez pudéssemos ter alguma chance juntos...
ELE – Aonde você quer chegar? E que tontura é essa...? Agora tá me dando um calor... uma falta de ar...
ELA – Deve ser o café... quente... tomou rápido... deve ser isso... Mas vamos falar dos seus sonhos...
ELE – Não tenho nada pra falar deles... E é claro que você está neles... Me dá um copo d’água, realmente não estou me sentindo bem...
ELA – Não! Não tem copo de água nenhum até que você me conte seus sonhos. Seus verdadeiros sonhos. Você não sonha comigo, não é? Vai, fala! Confessa. Nunca sonhou! Nunca! Ela, sempre ela, todos os dias, nos mais variados lugares do mundo...
ELE – Do que você tá falando? Água... médico... preciso de um médico... tou sem conseguir respirar direito...
ELA – E vai piorar. Muito. O veneno no café tem esse efeito mesmo.
ELE – Veneno no café? Você me envenenou? Por quê?
ELA PEGA UMA PARAFERNÁLIA QUE PARECE UM ANTIGO TOCA-FITAS, PÕE SOBRE A MESA E LIGA.
ELA – Você reconhece essa voz?
ELE (voz no toca-fitas) – Ah, Ludmila... Que delícia estarmos em Paris, mon cherry... Da próxima vez quero te levar para Istambul... já ouvi falar maravilhas...
ELA – Ah, essa não é a parte boa...
ELA ADIANTA A FITA. SOM DE FITA AVANÇANDO.
ELA – Aqui. Essa é a parte que mais gosto. A única vez que você sonhou comigo.
ELE (voz no toca-fitas) - ... Morta... Agora tudo está resolvido... Veja como ela está nesse caixão... está bonita, não está? Parece mais nova. Tá mais inchada... esticou a pele... Aqui? Você que fazer amor aqui? Diante do corpo da minha mulher? Que delícia, Ludmila! Que depravação. Eu quero. Vamos transar aqui... Eu te amo!
ELE ESTÁ APAVORADO, NÃO CONSEGUE MAIS FALAR.
ELA – São seus sonhos, meu bem. Gravei noite após noite. Você foi sua própria cobaia. Sua máquina de gravar sonhos funciona sim. “Os neurônios enviam os impulsos, a máquina os lê e os decodifica em forma de fala”. Não é isso? Aprendi direitinho? É maravilhoso, não é? Você ganharia muito dinheiro com ela. Pena que não estará aqui para usufruir dele. Mas eu estarei, não se preocupe. Que ironia... E você me viu morta no seu sonho. Pena que era só um sonho, meu bem. Porque a sua morte está na minha realidade. A sua e a de Ludmila.
ELA SAI. ELE PERMANECE SOBRE A CADEIRA, PROSTRADO, RESPIRANDO COM MUITA DIFICULDADE. ELA VOLTA PUXANDO LUDMILA PELO CHÃO, MORTA.
ELA – Aqui está seu grande amor. Agora é só você e ela, para sempre.
ELE VÊ LUDMILA E CAI DA CADEIRA. ELA PUXA LUDMILA ATÉ BEM PRÓXIMO DELE E A COLOCA SOBRE O CORPO DELE.
ELA – “Num ato desvairado de amor, casal de amantes morre envenenado”. Seria uma boa manchete. Vou sugerir para o Clube da Cena. Tenham bons sonhos.
ELA VAI ATÉ O PROCÊNIO E DÁ UMA ENTREVISTA. FOCO SOMENTE SOBRE ELA.
ELA (fingindo muita emoção) – Desculpem... é difícil falar sobre isso... Eu o amava muito. Nunca podia imaginar que ele e minha prima... Mas é verdade. Eles eram amantes. Eu saía de casa e lá ia ela amar meu marido no nosso quarto, na nossa sala, na nossa cozinha... A minha casa estava impregnada de traição. E eu, inocente, amando os dois incondicionalmente. Minha prima, minha melhor amiga. “A máquina de gravar sonhos é possível, meu amor”. Foi o que ele me disse alguns dias atrás. Era assim que ele me chamava. Meu amor... Como podia desconfiar, meu Deus? Ele era tão carinhoso, tão presente. Se eu soubesse que a máquina funcionava realmente, talvez tivesse conseguido impedir essa tragédia. Espero que a sociedade possa fazer bom uso dessa invenção fantástica. Que não a usem para fins maldosos, vingativos... Muito obrigada a todos. Boa noite.
VÁRIOS FLASHES DE FOTOGRAFIAS SOBRE ELA.
BLACK OUT.
ELE – Acorda! Acorda! Já pode acordar. Pode abrir os olhos.
LUZ QUE SOBE EM RESISTÊNCIA.
ELA ESTÁ DEITADA NO PROCÊNIO. ELE, AO SEU LADO, COM O TOCA-FITAS NA MÃO. O CORPO DE LUDMILA NÃO ESTÁ MAIS LÁ.
ELA (ainda sonolenta) – E aí? Funcionou?
ELE (muito sério) – Sim, funcionou. Você não imagina o quanto.
ELA – Que maravilha, meu amor! E o que foi que eu sonhei? Não lembro.
ELE – Não importa. Eu quero o divórcio.
BLACK OUT.
FIM.